“O indivíduo que não gosta de cor está morto em vida”, diz o artista Thiago Martins de Melo em conversa sobre a dificuldade que artistas e críticos do chamado norte global têm em compreender as cores saturadas dos trópicos. “O europeu não entende tons berrantes, ele não consegue tirar o pastel da mente porque não tem o fogo necessário que o latino tem.”
Sua fala resume bem não só sua obra como a relevância da exposição “Cosmogonia Colérica”, que acontece no Convento das Mercês e o Chão SLZ, em São Luís, no Maranhão, curada por Germano Dushá e patrocinada pelo Will Bank.
Primeira exposição individual do artista na cidade onde nasceu e cresceu, a mostra revela aos próprios maranhenses como a obra de Martins de Melo bebe, repensa, revira e ressignifica a cultura local reforçando toda potência do Maranhão.
Trata-se de um recorte panorâmico de 21 trabalhos coléricos que vibram em alta voltagem e expõem uma espiritualidade única carregada de luta política. Pinturas apocalípticas e cósmicas onde tudo é fúria e excesso: cores, materialidade e narrativas traçadas por tramas ecológicas, sociais, identitárias e espirituais.
O título da mostra aponta para a criação a partir do caos e do enfrentamento: “É uma poética de mundos nascidos em meio a choques, convulsões históricas e epifanias místicas. Martins de Melo elabora um universo visual de intensidades, incorporando o peso da história e da espiritualidade brasileira e latino-americana em fricção permanente com as questões do presente”, escreve Dushá.
O visitante é recebido por “Ascensão – Queda – Aliança – Redenção”. No centro, vemos uma animação da Pangeia, supercontinente ancestral que representa a união de todos os povos, propondo um retorno ao tempo anterior às divisões geopolíticas e à lógica de separação e dominação.
O escorpião —associado ao veneno, elemento que pode ser instrumento de cura ou de ataque— aparece entre figuras na iminência de atos brutais, selando pactos ou fazendo rituais.
A obra, que evoca um ciclo de colapso e regeneração, já anuncia um processo recorrente no trabalho de Thiago: por meio de uma miscelânea de referências iconográficas e filosóficas, ele constrói uma espécie de combustão simbólica que serve de terreno para a destruição, transmutação e renascimento, sempre questionando violências e narrativas coloniais. Elabora, assim, sua própria cosmogonia.
“Episódios históricos, cenas de resistência popular, corpos em transmutação se entrelaçam em composições vibrantes que evocam uma mitologia crítica do Sul Global”, diz Dushá. A origem desse caldeirão efervescente de referências torna-se ainda mais evidente quando seu trabalho é apresentado no território em que nasceu —a própria cultura maranhense.
Menções à paisagem e cotidiano local aparecem com frequência, assim como as práticas espirituais que rejeitam o sincretismo e reivindicam crenças insurgentes e decolonizadoras.
Em “Psicopompos manguezal – para Tereza Légua e Tunga”, por exemplo, Martins de Melo aborda uma fronteira ativa entre mundos, expondo o manguezal como um ecossistema denso e de transição —entre o rio e o mar, o visível e o invisível, a vida e a morte— e os psicopompos, figuras míticas muito presente no trabalho de Tunga que, em diversas tradições, guiam as almas por diferentes planos de existência.
O artista evoca entidades, arquétipos, símbolos e talismãs que chamam nossa atenção para os mistérios e espectros do mundo, para o conhecimento oculto, a intuição e a sabedoria ancestral. Assim, elementos e entidades de cosmologias afro-ameríndias permeiam todo trabalho ao lado de comentários sobre Tarô, Astrologia, Gnosticismo, Cabala Clifótica, entre outras ciências e crenças.
Dona Tereza Légua é uma entidade espiritual da Encantaria Maranhense, que supostamente viveu numa fazenda de algodão, conhecida pela liderança, força e senso de justiça. “Ela é cultuada inclusive pelos indígenas gamela. É importante falar que os encantados daqui lutam com os povos da terra contra a escravidão, coronelismo e grilagem até hoje”, explica Martins de Melo. “É preciso entender que, no Maranhão, não há distanciamento na relação entre espiritualidade e luta política.”
A grande virada desta mostra está justamente na compreensão do entrelaçamento entre política e universo místico. “Esta percepção do meu trabalho é muito recente e Germano é um dos curadores que se sente confortável em falar sobre espiritualidade na luta, talvez por ter crescido também no Maranhão”, diz o artista.
A composição é formada por narrativas densas de brutalidade e resistência que marcam o tecido social brasileiro: desmatamento, violência policial, assassinatos e torturas se misturam a cenas ritualísticas e levantes ligados aos povos originários e aos movimentos populares.
Martins de Melo trabalha vibração do fogo e da guerra: cria versões de um caos colérico, entrelaçando o misterioso e o espectral a narrativas latino-americanas e cenários tropicais.
Em muitas pinturas, massas de tinta parecem saltar da tela. Ganham corpo, sublinhando sua constituição escultórica e um caráter explosivo e estrondoso. No Convento das Mercês, sua prática pictórica expandida e paletas efervescentes parecem cruzar ainda mais uma dimensão até chegar na paisagem do museu que, não à toa, tem vista para o Monumento à Diáspora Africana, no Centro Histórico.
No pôr do sol visto desde a exposição acendem as mesmas cores e luzes incandescentes das telas, o mesmo sol inflamado e céu em transformação, que vai dos tons alaranjados e vermelhos até o roxo, anunciando os perigos, magias e mistérios da noite.
“Lembro que cresci em apartamentos que davam de cara com o pôr do sol. Já viajei muito e tenho certeza que o pôr do sol mais lindo do mundo acontece em São Luís. Todo dia e ao longo do ano inteiro”, diz o artista.
“São Luís é uma cidade contemplativa, tem muito para te dar ao nível espiritual, cultural e imagético, um lugar onde você vai viver experiências únicas”. É uma cidade em ebulição, assim como o artista e sua obra.
A jornalista viajou a convite do Will Bank
Fonte ==> Folha SP
