Caso que virou livro “Rota 66”, de Caco Barcellos, faz 50 – 22/04/2025 – Cotidiano

Um homem de cabelos grisalhos e pele clara está posando ao ar livre. Ele usa uma camisa azul clara e calças claras. Ao fundo, há estruturas metálicas e uma antena, sugerindo um ambiente urbano ou industrial. O céu está claro e há uma montanha visível ao fundo.

Há exatos 50 anos, na madrugada do dia 23 de abril de 1975, três rapazes com idades de 17 a 22 anos circulavam em um Fusca azul pelos Jardins, em São Paulo, quando pararam em frente ao número 46 da rua José Clemente. Pularam o muro e abriram o Puma estacionado na garagem para roubar o toca-fitas de Roberto Carvalho Veras, um amigo da mesma turma que devia dinheiro a um deles.

Quando perceberam a chegada silenciosa de uma Veraneio da Rota cinza, apagada, já era tarde. Criadas em 1970, as famigeradas Rondas Ostensivas Tobias Aguiar da Polícia Militar de São Paulo já eram conhecidas pelas ações letais voltadas ao combate às guerrilhas que desafiavam a ditadura militar. Para o motorista sem carteira do Fusca, Francisco Noronha, 17, o jeito era fugir.

A perseguição, digna de cinema, envolveu sete viaturas de sirene ligada e terminou tragicamente. Noronha, Carlos Ignácio Rodriguez de Menezes, 22, e João Augusto Junqueira, 19, foram metralhados por policiais da equipe 66 da Rota.

O caso escandalizou o país, virou um marco da violência policial paulistana e foi o ponto de partida de uma investigação de sete anos do jornalista Caco Barcellos que deu origem ao livro “Rota 66: a história da polícia que mata” (Record).

Nele, o jornalista levanta quase 4.200 mortes provocadas por policiais paulistas entre 1970 e 1992, ano em que lançou o livro.

“Desde então, não teve mais ninguém de classe média alta, privilegiado, que tenha sido morto pela polícia no Brasil. Não tem um milionário desonesto que policiais tenham matado até hoje”, afirma o jornalista., hoje diretor do programa Profissão Repórter, da TV Globo.

“Eu achava que denunciaria o absurdo que é matar bandido, mas descobri a prática da PM de matar gente que sequer cometeu algum crime registrado pela polícia e pela Justiça brasileira”, conta ele em entrevista à Folha.

Cinquenta anos depois, como você vê o caso que deu título ao seu livro?

Tenho a lembrança de como aquilo me despertou. Eu ainda morava em Porto Alegre, mas acompanhava esses crimes da Rota, que era uma força auxiliar do Exército, criada para ajudar na repressão aos guerrilheiros e oponentes do regime militar em São Paulo. Mas a guerrilha, entre aspas, acabou em 1972. Em 1975, mataram três jovens de classe média alta. Isso nunca tinha acontecido. Ficou aquilo na minha cabeça. No final de 1975, eu fui morar em São Paulo, ao lado do Instituto Médico Legal (IML). Fiquei sabendo que a Rota ia no IML todo dia. Não parava de chegar viatura desses caras. Naquele tempo era tudo aberto, ninguém controlava lugar frequentado por pobre. E ali eu comecei a ver que, caramba, eram quatro, cinco por dia. Logo eu aprendi que a morte daqueles meninos tinha sido uma exceção e que a Rota não era mais força auxiliar da repressão. Ao investigar os mortos pela polícia de 1970 a 1992, identifiquei guerrilheiros mortos nos primeiros anos. Depois, mudou o perfil: era só gente pobre.

O que mais marcou você nesse caso?

Eu fiquei indignado, muito tempo depois, quando veio à tona o depoimento do coronel Erasmo Dias, então secretário da Segurança Pública de SP, em que ele admite que inventou tudo, seguindo o modelo que os americanos ensinaram aos coronéis brasileiros durante a ditadura: como matar e, sobretudo, como apresentar o caso para a imprensa e a sociedade. A imprensa preguiçosa repetia o enredo, e formava a opinião pública.

Era sempre assim: patrulha circulando se depara com meliantes que disparam contra as nossas forças, que atiram de volta em legítima defesa e, numa ação humanitária, levam os feridos para o hospital. Só que, no caminho, eles morrem. Quando o policial diz que foi agredido, ele vira vítima de um agressor que morreu no processo. O caso se torna um auto de resistência. Isso até seria justificável com ferimentos da cintura para baixo, para dominar a pessoa e não matá-la. Mas eu pude verificar nos casos que eu identifiquei que a maioria dos tiros era da cintura para cima e, sobretudo, concentrados em zonas vitais, como o coração, costas e nuca. Em guerras, há uma relação de uma morte para cada seis feridos. Mas, nos tiroteios da Rota, quase nunca tem ferido.

Como você fez a lista dos maiores matadores da polícia de SP que cita no livro?

Eu agradeço muito, sobretudo, ao Notícias Populares [jornal que pertenceu ao grupo Folha, encerrado em 2001], que era muito elogioso às ações da polícia. Quando eu descobria um caso antigo no IML, eu corria para o prédio da Folha para pesquisar como é que eles deram a notícia. Lá no finalzinho do texto sempre havia uma menção à “brilhante equipe do capitão Conte Lopes”, por exemplo. Comecei a cruzar essas informações. Mas não atentei para o fato de dois da lista terem sido promovidos para o comando do Gate e do COE, que meses depois participaram do Massacre do Carandiru, um episódio que assinou embaixo do que eu trouxe no livro. Que polícia é essa que tem 90 mil homens e escolhe os caras que mataram mais de 30 pessoas para chefiar grupos especiais? Não tem ninguém que mereça mais credibilidade entre 90 mil policiais?

Como avalia o fato de o atual secretário de segurança pública de São Paulo, Guilherme Derrite, ter sido expulso da Rota por excesso de mortes em serviço?

Eu coloco a mesma pergunta: não tem outra pessoa para escolher? Ele é acusado de 16 mortes. São 90 mil policiais militares! Eu imagino que seja uma ofensa para a maioria desses policiais quando este tipo de ação é sistemática. Porque a polícia de Londres matou uma pessoa em 2023 e as polícias do Brasil mataram 6.393.

O que mudou nesses 50 anos?

Mudou muito, para minha tristeza. As pessoas em geral ignoravam letalidade policial, e a imprensa não dava a devida importância a ela. Passaram a dar muita importância, mas parte da sociedade se posicionou a favor disso. Muita gente se elege divulgando que é matador. Brasília está cheia de matadores ou de gente que os apoia ou que é filósofo da violência extrema. Aquele senhor, oficial, que liderou o Massacre do Carandiru [coronel Ubiratan Guimarães] se candidatou com o número 111 na cédula —o número de mortos no massacre. Isso indica que o problema não é a Polícia Militar, mas uma sociedade extremamente conservadora e violenta. O que assusta também é que essas pessoas se dizem muito religiosas, católicas e evangélicas sobretudo, e, caramba, o pecado mais grave dessas religiões é matar. Sinceramente, sem ser irônico, eu não consigo entender como é que se explica ser católico, ser evangélico e a favor dos matadores. Deus não disse que, se for bandido, pode matar.

O que mudou do ponto de vista da ação policial?

Aquilo que estava restrito à Rota se espalhou. Apareceu a tropa de elite, o Bope, outra na Bahia, no Ceará, em Santa Catarina. Hoje vários estados têm a sua Rota. O livro, se fosse feito hoje, teria de se chamar Bope alguma coisa, e não Rota 66.

Ingenuamente, eu sonhava que, ao denunciar o que é a ilegalidade de matar bandido, mesmo sendo criticado por isso, essas mortes fossem diminuir. Mas, quando comecei a apurar, fiquei muito assustado porque eu não encontrava bandido. Consultava a Justiça e vinha “nada consta”. Eu tinha uma bomba na mão. Eu achava que denunciaria o absurdo que é matar bandido, mas descobri a prática da PM de matar gente que sequer cometeu algum crime registrado pela polícia e pela Justiça brasileira. Isso me deu uma urgência. Eu tinha que terminar o livro logo, até porque eu tinha medo de ser morto.

Como lidou com esse medo?

O dom Paulo Evaristo Arns [arcebispo de São Paulo que enfrentou a ditadura] me ajudou muito a me acalmar. Ele pegou meu banco de dados e guardou lá na Cúria Metropolitana, naqueles cofres gigantes deles. Eu tenho até hoje guardado aqueles disquetes. Fiz uns 20 e ia distribuindo para as pessoas, escondendo pela cidade. Enterrava. O dom Paulo também me disse que o meu melhor esconderijo era a multidão. Ande na multidão, ele disse, mas cuide ao sair e chegar em lugares conhecidos. Eu achava que quando o livro fosse lançado eles parariam de matar, bom senso vai imperar. Mas eu fui processado. Alegaram que eu tinha manchado a imagem da PM. Tive 18 sentenças favoráveis. Acho que hoje eu não seria absolvido.

Por quê?

Acho que tem forças que apoiam isso dentro do Judiciário. Como você explica que, de cada 10 casos [de mortes provocadas por policiais], 9 são arquivados? Não há um grande interesse em apurar e saber o que de fato aconteceu.


Raio-X

Cláudio Barcelos de Barcellos, 75

Conhecido como Caco Barcellos, nasceu em Porto Alegre (RS). Foi um dos criadores da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre e trabalhou na Folha da Manhã na capital gaúcha antes de se mudar para São Paulo, onde se notabilizou pela atuação como repórter televisivo na Globo. Cobriu guerras civis na América Central e na África e foi correspondente em Nova York e Londres. É autor de “A Revolução das Crianças”, “Rota 66” e “Abusado”, os dois últimos vencedores do prêmio Jabuti. Desde 2006, é apresentador e diretor do programa Profissão Repórter



Fonte ==> Folha SP

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