Jonathas de Andrade prepara mostra com cardeal no Vaticano – 06/05/2025 – Ilustrada

A imagem mostra uma mulher com cabelo afro, segurando cobras em suas mãos. Ela está olhando para o lado, com uma expressão serena. O fundo é escuro, destacando a figura da mulher e do polvo, que está enrolado em seus braços. A iluminação é suave, criando um contraste entre os elementos da imagem.

Jonathas de Andrade foi pego de surpresa pelo convite. O papa Francisco queria encontrar-se com 200 artistas do mundo inteiro na Capela Sistina, e o artista plástico alagoano radicado no Recife era um deles.

O encontro foi em junho de 2023. A partir dali, veio a proposta para que Andrade preparasse uma exposição no Vaticano no segundo semestre deste ano, como parte da programação cultural do Jubileu, celebrado a cada 25 anos pela Igreja Católica.

O convite do papa Francisco é uma dentre várias evidências do prestígio internacional cada vez maior de Andrade, cujas instalações, fotografias e vídeos se inspiram nos problemas da sociedade brasileira para refletir sobre temas universais.

No começo de abril, ele inaugurou uma exposição na Commanderie Peyrassol, um espaço que combina turismo cultural e enogastronômico na ensolarada região da Provence, no sudeste da França.

Este ano, ele também deve expor suas obras no museu Jeu de Paume de Tours, na França; no Kunsthalle de Münster, na Alemanha; no Centro Conde Duque, em Madri; e no Victoria and Albert Museum, em Londres.

A morte de Francisco e a eleição de seu sucessor, acredita Andrade, não devem alterar o andamento do projeto da Santa Sé. Em maio, o brasileiro vai ao Vaticano pesquisar ideias para criar as obras da exposição.

O interlocutor do brasileiro tem sido o cardeal português José Tolentino de Mendonça, que visitou o ateliê de Andrade no Recife. “O diálogo com ele é muito valioso. Além de cardeal, ele é um poeta e pensador.” As casas de apostas britânicas situam em cerca de 4% as chances de Tolentino se tornar o novo papa.

Amante de arte contemporânea –foi o primeiro papa a visitar a Bienal de Veneza–, Francisco chamou para um encontro no Vaticano artistas plásticos (Anish Kapoor), escritores (Amélie Nothomb, Roberto Saviano), músicos (André Rieu), cineastas (Marco Bellocchio, Ken Loach), arquitetos (Jean Nouvel, Rem Koolhaas) e fotógrafos (Andrés Serrano).

Do Brasil, além de Andrade, estavam a escritora Ana Maria Machado e o artista plástico Vik Muniz. “Na beleza verdadeira, começamos a vivenciar o desejo de Deus”, discursou o papa aos artistas.

Alguns trabalhos de Andrade lidam com temas relacionados à religião. Em 2013, ele expôs na Jordânia um painel intitulado “Procurando Jesus”, com 20 rostos de homens árabes fotografados nas ruas de Amã. Era uma forma de discutir qual seria o verdadeiro rosto do Cristo, questionando a iconografia que o representa com traços caucasianos.

O encontro na Capela Sistina marcou o que Andrade define como uma “reaproximação” dele com a Igreja, da qual tinha se afastado devido ao conservadorismo. “Essa relação do papa com os excluídos, refugiados, palestinos, pobres, a comunidade LGBT, foi um passo muito importante. Estou na torcida para que esse processo continue.”

A mostra de Andrade em Peyrassol, parte da programação de eventos culturais do Ano do Brasil na França, intitula-se “A arte de não ser voraz”. Ele pinçou o nome em um texto de Clarice Lispector publicado no Jornal do Brasil em 1961. É uma referência à ambivalência humana entre a voracidade e o autocontrole.

“Clarice está sempre investigando esse lugar psicológico do desconforto do ser. E achei que podia ser uma homenagem a uma escritora que está sendo traduzida internacionalmente, mas muitos franceses não conhecem.”

Andrade também apresenta obras inéditas em Peyrassol, uma delas criada com materiais pesquisados no solo do local: de conchas milenares a restos de plástico, evidências da destrutiva avidez humana.

O “desconforto” citado pelo artista é visível em obras como “O Peixe” (2016), filme de 16 mm adquirido pela Coleção Pinault francesa, um dos principais acervos privados de arte contemporânea. Nele, pescadores alagoanos abraçam e acariciam peixes que acabaram de capturar, subvertendo os códigos do documentário etnográfico. “É um dos meus trabalhos mais magnéticos, sinto que o público fica muito perplexo. Porque essa imagem é uma síntese da nossa humanidade civilizatória, cheia de contradições.”

Outra obra marcante da mostra é a escultura “Morder a Língua” (2022), imensa língua amputada, feita em papel-machê e resina para o pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, referência explícita ao negacionismo. “A gente vive uma onda de conservadorismo assustadora, de guerras, que me deixa muito preocupado”, afirma.

Exemplo dessa preocupação é “Fome de resistência” (2019-2020), conjunto de 42 telas em que pinturas corporais feitas por mulheres Kayapó do sul do Pará recobrem antigos mapas oficiais de terras indígenas. “Eu luto para não ser um pessimista, estou sempre tentando ver força e beleza na resistência”, explica o artista.

O próprio Andrade qualifica 2025 como um ano “intenso” para seu trabalho. Na exposição que está preparando em Tours, de junho a novembro, pretende apresentar uma obra inédita inspirada no trabalho do documentarista e etnólogo francês Jean Rouch (1917-2004). “Não quero anunciar [detalhes] porque não sei se vai ficar pronto. Mas vai acabar saindo”, brinca.

Andrade diz encarar como “desafiadores” tantos projetos no exterior. “É difícil não me sentir brasileiro ou latino-americano quando viajo pelo mundo”, define o artista. “Meu trabalho fala muito do Brasil, mas no fim fala de dimensões muito universais, dominações, desafios sociais e políticos que a gente pode encontrar no mundo todo.”

O brasileiro é o primeiro a expor em um novo espaço na Commanderie de Peyrassol, antiga comenda medieval dos templários com 850 hectares em Flassans-sur-Issole, a 100 km de Marselha, aberta ao público desde 2015.

O espaço pertence a Philippe Austruy, milionário belga apaixonado pelo Brasil (tem casa no litoral do Ceará), que fez fortuna no setor de casas de repouso, antes de se dedicar à viticultura e a uma eclética coleção de arte contemporânea.

Assim como ocorre em Inhotim, no Brasil, o visitante pode apreciar, ao ar livre ou na galeria de arte da propriedade, obras de artistas contemporâneos renomados, como Anish Kapoor, Antoni Tapiès, Carsten Höller, Daniel Buren e Niki de Saint Phalle.

O local também tem dois restaurantes –um deles, o Chez Jeannette, acaba de ganhar uma estrela no exigente Guia Michelin– e uma pequena e charmosa infraestrutura de hospedagem.

O repórter viajou a convite da Commanderie de Peyrassol



Fonte ==> Folha SP

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