O perfil discreto mantido por Carlos Eduardo Benevides Gomes durante 15 anos de serviço no 27º Batalhão de Polícia Militar, em Santa Cruz, na zona oeste carioca, contrastava com seu outro turno de trabalho. Temido até por colegas, Cabo Bené era conhecido pela frieza e pela violência na liderança de uma milícia em Itaguaí, cidade da Baixada Fluminense.
Dentro do batalhão, era comum ser designado a tarefas como cozinhar para o refeitório. Do lado de fora, foi o responsável por testar um modelo de franquia da milícia. Figura em ascensão no crime, Cabo Bené teve sua trajetória interrompida aos 39 anos de idade, em 15 de outubro de 2020, em uma operação da Polícia Civil com apoio da PRF (Polícia Rodoviária Federal), que terminou com a morte dele e de outros 11 companheiros em Itaguaí.
Mas afinal, por que um servidor da Polícia Militar terminou morto em uma ação das forças de segurança? A resposta é desfiada ao longo das páginas de “Como Nasce um Miliciano”, primeiro livro da jornalista Cecília Olliveira, cofundadora do Intercept Brasil, diretora-fundadora do Instituto Fogo Cruzado e diretora da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
Parte da explicação pode estar na formação de quadros da segurança. De origem pobre, Benevides começou soldado e chegou a sargento na PM do Rio. O pertencimento ao grupo, a formação para a guerra e a possibilidade de ganhar dinheiro tendem a superar as ordens éticas ou morais dentro dos batalhões, segundo o livro.
A autora aponta também como as milícias mudaram sua forma de ganhar dinheiro ao longo do tempo. A aposta no ramo imobiliário é a etapa mais recente desse processo, que teve seu embrião em grupos de extermínio ainda durante a ditadura, cresceu em bairros com a venda de gás e gatonet e a cobrança de taxas de segurança e já foi bem vista ou considerada um mal menor por políticos.
Mas esse modelo de negócio, similar ao das máfias, ganha o carimbo brasileiro por sua relação profunda com o Estado, diz Cecília. Para ela, não há um poder paralelo. “É o mesmo Estado. É o funcionário público que recebeu treinamento e usa munições para cometer crimes. É a mesma estrutura, só que usada para para benefício privado.”
O grupo é o mesmo, embora tenha ampliado sua atuação e seus quadros. Isso faz Cecília rejeitar, no livro, expressões como narcomilícia. “Isso não existe no sentido de um novo grupo criminoso. É a milícia de sempre, o tráfico é o de sempre, fazem aliança quando é conveniente.”
Segundo o livro, as milícias continuaram a se atualizar, fazendo alianças com traficantes sem deixar de lado a ligação intrínseca com a estrutura pública e as mortes por encomenda. O apetite pelos negócios não faz distinção entre esquerda e direita, afirma a autora.
Há quase cinco anos, a morte de Bené, em 15 de outubro de 2020, ocorreu às vésperas das eleições municipais daquele ano. A polícia montou uma blitz na avenida Ponte Preta, rota costumeira usada por ele e seus comparsas, e interceptou o grupo na noite de 15 de outubro. Também naquele ano, um vídeo flagrou o miliciano Danilo Dias Lima, conhecido como Tandera, negociando vantagens em licitações com pré-candidatos às prefeituras de cidades da baixada fluminense.
A operação terminou com um policial ferido, os 12 suspeitos mortos e uma mudança no equilíbrio de forças de milícia na região, segundo o livro. Ao mesmo tempo, virou um discurso vitorioso para o governo Cláudio Castro (PL), embora Cecília aponte que a morte de lideranças de grupos criminosos não tenha feitos concretos na segurança.
“A política do inimigo público número um sempre foi muito usada no Rio. Isso revela que não há plano de segurança, não há um projeto. Apenas bravatas. Todo dia tem um número um diferente e vai ser sempre assim. Resta trabalhar com marketing. Dá resultado e manchete.”
A autora diz que acha mais perigoso investigar milícias e escrever sobre política do que cobrir o tráfico. “É mais dinheiro, mais influência e mais acesso a informação.”
Baseada em duas décadas de trabalho com segurança pública, Cecília diz ter dúvidas se o Rio tem mais jeito, ao menos se os métodos de se fazer segurança continuarem os mesmos.
E esse problema, diz ela, não está apenas restrito ao estado. “São Paulo hoje é o Rio dos anos 1990. A gente sabe onde vai dar se ninguém fizer nada. Pela nossa experiência, ninguém faz nada mesmo. Então, boa sorte, São Paulo.”
“Acho que a gente precisaria de uma reforma política e das polícias, que o Judiciário não fosse tão seletivo ou moroso, que o Ministério Público trabalhasse na função de controle externo das polícias, hoje algo irrisório, e que o sistema financeiro fosse capaz de pegar essas movimentações financeiras de uma forma mais célere”, afirma Cecília. Depois da morte de Bené, a situação piorou. “Se as pessoas forem ler sobre o que está acontecendo na região, nas duas últimas semanas, continua uma disputa ferrenha, com morte e execução. O livro acabou, a história, não.”
Fonte ==> Folha SP