Ele já foi representante do governo dos Estados Unidos para a promoção dos direitos humanos na era Ronald Reagan, viajando pelo mundo a serviço da Usaid (a agência do governo americano para desenvolvimento internacional) para incentivar reformas políticas. Trabalhou também no Departamento de Estado (equivalente ao Itamaraty) investigando crimes de guerra.
Após uma longa carreira na Universidade de Defesa Nacional, ligada também ao Departamento de Defesa, tornou-se um dos maiores especialistas do mundo em redes criminosas internacionais, participando de estudos que apontam para o fenômeno da convergência criminal —quando grupos especializados em crimes totalmente diferentes, do terrorismo ao tráfico de drogas, passam a colaborar e se fortalecer.
Hoje, o professor Michael Miclaucic, 71, é o coordenador da Cátedra Oswaldo Aranha de Segurança e Defesa, um núcleo de estudos da USP dedicado à pesquisa desses temas e ao diálogo entre a academia e outros atores. Há cerca de nove meses, quando deixou de ser funcionário do governo dos EUA, ele quebrou um jejum de 42 anos em que não podia dar entrevistas e conversou com a Folha.
Debruçado sobre a convergência criminal nas Américas, ele apoia uma flexibilidade na forma como os governos classificam as organizações criminosas, como forma de combater a crescente flexibilidade criminal.
Em 2013, o senhor escreveu que os Estados Unidos estavam tomando medidas importantes para agir contra o crime organizado transnacional. Como o senhor avalia os últimos 12 anos nesse tema?
Infelizmente, não posso afirmar que houve grandes progressos. Tem havido uma recusa persistente em reconhecer a dimensão da demanda do crime organizado transnacional como um fator importante. As autoridades ainda frequentemente se concentram exclusivamente nos bandidos e descartam os clientes como danos colaterais.
Em alguns países e regiões, o crime organizado transnacional tornou-se uma força política e vimos casos de captura criminosa do Estado, o que é, eu diria, algo relativamente novo. Eu tenho que admitir e reconhecer que nos últimos 12 anos, sem desrespeito àqueles que estão trabalhando incansavelmente para combater o crime organizado transnacional, o progresso em geral não tem sido evidente.
No seu livro, no artigo que você escreveu com Moisés Naím, você diz que é uma ilusão pensar que o comportamento ilícito é uma aberração e que as pessoas envolvidas são desviantes. Diz também que ‘todos os dias milhões de pessoas em todo o mundo acordam, vão trabalhar e trazem pão para suas famílias, tudo graças a fazer algo que rotulamos como criminoso’. Nessas circunstâncias, classificar algumas atividades como criminosas é um erro?
Para esclarecer, o que escrevemos não tinha a intenção de tolerar qualquer atividade criminosa, mas foi um reconhecimento de que a atividade criminosa e a cumplicidade não são comportamentos radicalmente incomuns e devem ser entendidos como bastante comuns, mesmo que injustificáveis. Mas sua pergunta levanta questões mais profundas sobre como definimos crime.
A maioria de nós, acredito, concordaria que o tráfico de seres humanos é inaceitável e corretamente categorizado como atividade criminosa. Há apenas 25 anos, o uso de maconha era considerado crime em todos os Estados Unidos. E agora é legal em 40 dos 50 estados para uso medicinal e em 24 estados para uso recreativo. Então, o que definimos como crime precisa evoluir junto com as tolerâncias sociais e, aliás, com a tecnologia e o ambiente econômico em evolução.
Mas e quanto ao cultivo de coca ou papoula por muitas famílias na América Central ou no Afeganistão? As duas plantas podem ter outros usos além de drogas ilícitas. Você não estava falando sobre isso?
Existem duas maneiras possíveis de olhar para esta questão. Uma delas é que o próprio produto pode ter múltiplos usos, como a maconha, que pode ser usada para fins medicinais, ou produtos químicos precursores fabricados na China que têm aplicações de uso duplo. O outro aspecto é: podemos tolerar a colheita de maconha, papoula ou coca para fins econômicos por pessoas que não têm alternativas econômicas viáveis? E essa é uma questão sociopolítica e econômica muito profunda, para a qual os países precisam elaborar estratégias nacionais.
Por que você acha que há uma falta de discussão sobre a demanda? É possível combater o tráfico internacional de drogas e as redes criminosas sem mudar a forma como regulamos substâncias ilegais?
Não acho que seja só sobre regulamentação. Este não é um problema de organizações locais, é um problema de redes de organizações que é transnacional. Mesmo as organizações brasileiras, como o PCC [Primeiro Comando da Capital) ou o CV [Comando Vermelho], são organizações internacionais. Certamente sabemos que o cartel de Sinaloa é uma organização transnacional, a ‘Ndrangheta, a máfia italiana, é uma organização internacional.
Claramente os regimes regulatórios não conseguiram acompanhar a inovação química que, com apenas uma mudança de um único elemento em um composto, pode transformar uma droga controlada e ilegal em um composto anteriormente indefinido, não controlado e não regulamentado. O que me sugere a necessidade de uma abordagem diferente.
Novamente, nenhuma estratégia que não reconheça a demanda por bens e serviços ilegais fornecidos por grupos criminosos organizados terá sucesso. Há uma variedade de maneiras recomendadas para abordar o problema da demanda. A educação pública pode ter sucesso. Ninguém que eu conheça encontrou a solução perfeita para este problema. Mas há evidências de sucesso em alguns lugares, e isso deve ser coletado, examinado de perto e experimentado.
Você concorda com a classificação dos grupos Tren de Aragua, La Mara Salvatrucha e os cartéis de droga mexicanos como organizações terroristas?
Permita-me começar com uma ressalva. Eu não ofereceria nenhuma recomendação às agências brasileiras de aplicação da lei porque elas têm muita experiência nessa luta. Pode-se argumentar que, uma vez que os cartéis de drogas frequentemente usam os mesmos canais de comunicação e financeiros que as organizações terroristas, bem como algumas, se não todas, as táticas, técnicas e procedimentos violentos de campo de batalha como organizações criminosas, não importa realmente qual é a motivação deles. Ou pelo menos em alguns aspectos, não importa qual seja a motivação. Nenhuma dessas organizações é pura e monolítica. Certamente há pessoas e indivíduos em organizações terroristas que estão nisso pelo dinheiro.
Uma organização terrorista como o Estado Islâmico se tornou uma vasta empresa econômica criminosa. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia tornaram-se uma importante organização de tráfico de drogas. Há casos nas Filipinas em que organizações em algum momento tinham motivações ideológicas, mas essas motivações se dissiparam e elas estão simplesmente nisso [no crime] pelo dinheiro. De outro lado, existem algumas organizações criminosas que, embora possam não estar abraçando objetivos religiosos, estão abraçando objetivos políticos e querem controle político de territórios, de praças, de cidades, centros urbanos, e até mesmo lançam candidatos para apoiar seus pontos de vista. E isso é o que eu chamo de captura criminal.
Quando organizações criminosas estão apresentando seus próprios candidatos para cargos e vencendo e aumentando, representando pessoas no governo, mas com motivações criminosas por trás deles, isso é altamente problemático. Então, faz sentido classificar organizações criminosas como organizações terroristas? Um tamanho serve para um [ou seja, cada caso é singular]. Mas acho que certamente há um bom debate a ser travado sobre isso. Se tratá-las como organizações terroristas proporciona aos agentes de aplicação da lei um conjunto mais amplo de autoridades e ferramentas para combater esse ‘câncer’, é certamente um bom argumento.
Não há um problema relacionado com a soberania dos países, levando em conta o que a legislação americana permite quando se trata de organizações terroristas?
Sim, existe um problema aí, mas acredito que a solução não é indecifrável. A lei americana agora designa, creio que cerca de meia dúzia de cartéis, organizações de tráfico de drogas como organizações terroristas. O que a legislação não diz é que os Estados Unidos podem invadir o México para combater a guerra às drogas em território mexicano. Ela disponibiliza para as agências de aplicação da lei nos Estados Unidos uma gama mais ampla de ferramentas para combater a guerra às drogas, se podemos chamá-la de guerra. Mas acredito que, para sermos bem-sucedidos, essas ferramentas precisam ser usadas em estreita consulta com nossos vizinhos, parceiros e aliados, incluindo o México, e com total respeito à soberania do nosso vizinho.
Qual é, o senhor diria, a questão mais importante sobre o combate ao crime organizado internacional hoje no mundo?
O mundo tem estado preocupado com outras coisas. Francamente, essa é parte da razão pela qual não fizemos progresso global. O mundo esteve preocupado com a guerra global contra o terror. Depois ficou preocupado com o surgimento da China, então foi a Ucrânia, agora é Gaza e Irã. O mundo nunca realmente se concentrou nesse desafio de maneira coordenada fora das organizações internacionais, multilaterais e organizações não governamentais —que realmente têm pouco poder. Então, qualquer coisa que possamos fazer para promover a educação pública sobre isso é um bem público.
Isso mudou? Os governos estão prestando atenção ao problema do crime organizado?
Em 1999, o então diretor do FMI [Fundo Monetário Internacional], Michel Camdessus, disse que o valor total do mercado ilícito chega a 5% do PIB [Produto Interno Bruto] global. Hoje isso seria US$ 5 trilhões, o que é maior que a economia de muitos Estados, exceto um grupo muito pequeno. Se as pessoas percebessem o que US$ 5 trilhões podem comprar em termos de armas de destruição em massa, de suborno, dos melhores advogados, milícias, contadores e tecnólogos que o dinheiro pode comprar, se as pessoas realmente enfrentassem essa realidade, sim, poderia haver progresso. Fizemos progressos contra a escravidão no mundo. Não faz muitos séculos que a escravidão era comum. Hoje é politicamente inaceitável. O apartheid era aceitável há 100 anos. Já não é mais aceitável. Acho que esse problema poderia ser efetivamente abordado. Só não tenho certeza quando.
Raio-x
Michael Miklaucic
Formado pela Universidade da Califórnia, tem mestrado em economia pela London School of Economics. Trabalhou na gestão de quatro presidentes americanos (Ronald Reagan, George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush) em diferentes funções. É atualmente professor da Universidade de Chicago e coordenador da Cátedra Oswaldo Aranha de Segurança e Defesa, da USP
Fonte ==> Folha SP