Há três anos, escrevi a matéria “Câncer: verdades difíceis demais para serem ditas em voz alta”, em que contei sobre os resultados da minha pesquisa de doutorado sobre as expectativas irreais de pacientes com cânceres avançados sobre os tratamentos que realizam contra a doença.
Apresentei os dados que demonstram que a maior parte das pessoas acredita que as quimioterapias ou imunoterapias a que se submetem promoverá a cura ou as manterá vivas durante muitos anos. Que elas acreditam que, desde que se mantenham em tratamento, a doença não irá matá-las. Mas que, na verdade, a maior parte das drogas não têm evidência de aumento de sobrevida nos casos de cânceres metastáticos e, quando têm, geralmente não passa de três meses.
Por que isso acontece? Médicos encontram formas de evitar conversas difíceis. Estudos apontam que, muitas vezes, os especialistas preferem sugerir novos tratamentos a falar sobre a realidade do fim da vida que se aproxima para seus pacientes. Muitos chegam ao último mês de vida acreditando que um tratamento que já não tem qualquer potencial de benefício – mesmo que mínimo – ainda os salvará da doença.
Quando as pessoas que estão no final das suas vidas não entendem que a morte está próxima, elas tomam decisões planejando futuro. Costumo dizer que trocam o presente pelo futuro. O desconhecimento do prognóstico tira dessas pessoas as chances de se despedirem e decidirem o que fazer com o tempo restante. Muitas vezes, faz com que insistam em rotinas extenuantes de hospital, quando poderiam estar vivendo o fim das suas vidas com suas pessoas amadas, em seus lugares de escolha.
Fim da vida é tão vida quanto tudo que aconteceu até ali. Pode – e muitas vezes irá – constituir a principal parte da biografia de alguém, responder pelo legado mais importante que se quer deixar. Mas, para isso, é necessário entender que o tempo que um dia se imaginou ter está acabando.
Essa não é a única consequência nefasta da falta de honestidade sobre prognósticos. Em muitos casos, ela nem é a pior.
Para realizar o estudo qualitativo que faz parte da minha tese, conversei, em 2018, com quase 50 pessoas com cânceres metastáticos, no Brasil e na Alemanha.
Uma delas foi uma paciente alemã que, durante a conversa, mostrou um machucado bem feio no peito. Ela me disse que estava doendo muito. Mas, quando seu médico suspendeu a quimioterapia que faria naquele dia, ela se desesperou. Disse que estava ótima, que não sentia nada. Aquela mulher de 87 anos mentia sobre sua dor, porque acreditava, erroneamente, que era o tratamento que a mantinha viva.
Essa expectativa equivocada sobre intervenções médicas faz com que pessoas doentes levem tratamentos às últimas consequências, minimizando sofrimentos pelo medo de perderem a suposta chance de cura ou de muitos anos ou décadas de vida pela frente. Chance que, na verdade, nunca existiu.
Outra entrevista que me marcou foi com uma mulher brasileira que estava na expectativa de fazer 80 anos. Ela confiava na cura, embora tivesse medo de morrer. “Mas isso nem é o pior. O pior é que, depois que comecei a quimioterapia, perdi a sensibilidade dos dedos. E eu sou costureira, costurei a vida toda, sempre foi a minha vida. Isso em mim já morreu”.
Não apenas os médicos, mas as pessoas em geral tendem a colocar a sobrevivência a qualquer custo como uma meta inabalável. Como se fosse óbvio que todo mundo aceitará as maiores restrições de sentidos ou autonomia em prol do bem maior de continuar vivo.
Acontece que as pessoas são diferentes. E muitas não estão dispostas a perder a sensibilidade dos dedos nem mesmo para se curar de uma doença aos 80 anos. Quem dirá para aumentar seu tempo de vida em três meses.
Gosto de uma frase do jusfilósofo Lon Fuller, que diz que “se o principal objetivo de um capitão fosse preservar seu navio, ele o manteria no porto para sempre. Quanto à proposição de que a maioria esmagadora dos homens deseja sobreviver mesmo que à custa de terrível sofrimento, isso me parece de verdade duvidosa”.
A história daquela mulher já me entristecia muito. Eu me colocava no lugar dela e tentava imaginar a vida que tinha restado quando a sua razão, costurar, houvera se perdido na tentativa de continuar viva. Mas eu abstraía todo o resto. Pensava apenas nessa função, costurar.
Até que, há um mês, comecei a perder a sensibilidade dos dedos da mão esquerda. É como ter uma câimbra cujos efeitos ficaram. Meu provável diagnóstico é síndrome do túnel do carpo, algo que tem tratamento. Mas que por enquanto segue se agravando.
A piora na vida da paciente que não conseguia mais costurar não se resumia a isso. A perda de sensibilidade afeta cada tarefa simples, de segurar um copo ou abrir uma torneira a fazer carinho numa criança ou sentir os pelos de um animal de estimação. É um impacto brutal, que nós minimizamos, assim como minimizamos queixas importantes de sofrimento físico, considerando aceitáveis centenas de agulhadas, exames, dores, vômitos, tontura, cansaço e o que mais vier.
No ano passado, passei longas noites com uma secura intensa na boca. A sensação era de engolir terra, eu bebia litros de água e não fazia qualquer diferença. Fui a três médicos e os três disseram que eu estava com um quadro infeccioso e que era assim mesmo. Eu não conseguia dormir por duas horas seguidas, tinha a sensação que elegi como uma das cinco piores da minha vida, nunca tinha passado por nada parecido antes. E a medicina me respondia que “era assim mesmo”.
Médicos olham muito para doenças e pouco para pessoas. Se aquele vírus não representava nada na minha vida a longo prazo, então eu não tinha uma questão grave a ser avaliada. A solução para meu problema era muito simples e se chamava saliva artificial. Mas eu tive que descobrir isso sozinha.
Depois de acompanhar questões de saúde sensíveis ao meu redor, tenho pensado cada vez mais no que, há alguns anos, chamei de “dignidade imediata“. Quando era nova, tinha dificuldade de compreender quão imenso é dar a alguém um momento digno, mesmo quando ele não garante nada amanhã. Talvez essa seja a forma como aprendemos a ler o mundo, como a medicina aprende a ler o mundo: sempre preocupada com o que atos podem significar no futuro, ignorando o presente.
Minha percepção começou a mudar quando passei a acompanhar políticas públicas de transferência de renda de perto. E mudou radicalmente quando conheci um projeto chamado Banho de Amor, que oferece condições básicas de higiene e bem-estar a pessoas que moram nas ruas de Belo Horizonte. É óbvio que banho quentinho e roupas limpas para quem está há dias sem acesso à água para lavar o corpo é um choque imediato de dignidade. Mas é um óbvio que eu não identificava.
Mesmo quando não representa mudança alguma na semana seguinte, a suspensão do sofrimento vale o momento, vale a dignidade possível no imediato do tempo em que tudo é ruim. Deixar de ter dor, não ter sensação de terra na boca, voltar a sentir os dedos, tomar um banho. Tudo aquilo que salva alguém, mesmo que apenas por um momento. E isso não é pouco.
Fonte ==> Folha SP