“É uma verdade incontestável que a educação da mulher muita influência teve sempre sobre a moralidade dos povos e que o lugar que ela ocupa entre eles é o barômetro que indica os progressos de sua civilização” — trecho do livro ‘Opúsculo Humanitário’
Uma coletânea de 62 ensaios, “Opúsculo Humanitário” marca a estreia desse gênero na lista de livros da Fuvest. A autora, Nísia Floresta, também aparece pela primeira vez. Publicado originalmente em 1853, o livro reúne textos que já haviam sido publicados em periódicos do Brasil. Em seu conjunto, a obra defende a necessidade de as meninas receberem a mesma educação dos meninos, algo que desafiava o padrão vigente.
Quem é a autora
“A primeira feminista do Brasil”: é assim que a pesquisadora Constância Lima Duarte, professora de literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), se refere a Nísia Floresta em suas publicações. Por mais que algumas das ideias de Nísia possam parecer distantes das defendidas pelo feminismo atual, ela foi uma mulher que no século 19 lutou pelo direito das mulheres de estudar e pela valorização do papel feminino na sociedade.
Numa época em que as mulheres, mesmo as da burguesia, viviam limitadas ao mundo doméstico e submetidas ao poder patriarcal, Nísia separou-se do primeiro marido, viveu uma segunda união, foi mãe, fundou e dirigiu um colégio, viajou e estudou na Europa. E, durante todo esse tempo, escreveu.
Suas obras abrangem vários gêneros textuais —ensaios, poesias e relatos de viagem— e vários idiomas; além do português, escrevia em francês e italiano. Defesa de direitos para mulheres, da abolição da escravidão e de dignidade para os povos indígenas eram temas presentes em suas publicações.
Seu nome de batismo era Dionísia Gonçalves Pinto; nasceu em 1810 em Papari (RN), uma cidade que hoje leva o nome da escritora. Há registro de artigos seus em periódicos desde 1830. Fundou e manteve por 17 anos um colégio feminino no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto. Mudou-se para a Europa, onde viveu cerca de 30 anos. Frequentou aulas do positivista Augusto Comte e passou a corresponder-se com ele.
Morreu em 1885, na cidade de Rouen, na França, de pneumonia.
O que é importante saber sobre a obra
Temas de vanguarda
Defender que as meninas tenham a mesma educação formal que os meninos causava espanto quando a obra foi publicada. “O ‘Opúsculo Humanitário’ foi inovador no plano das ideias. Em meados do século 19, o Brasil vivia sob um regime escravocrata, patriarcal e com forte exclusão das mulheres e dos indígenas da esfera dos direitos”, diz Heric José Palos, coordenador de português do Curso Etapa.
No livro, Nísia argumenta que a educação da mulher permitiria o desenvolvimento da sociedade. Além disso, ressalta que a obra aponta outros problemas do sistema educacional brasileiro à época, como falta de legislação específica, salas lotadas, interesses financeiros, professores malformados. Inclui ainda crítica à escravidão e a denúncia do abandono dos povos indígenas em vários dos ensaios.
Como se fosse uma grande dissertação
A obra apresenta uma tese principal e usa vários tipos de argumento para tentar convencer o leitor. Cada texto é como uma pecinha para chegar a esse objetivo maior de persuasão.
“Há momentos em que cita uma estatística sobre evasão escolar. Também dá exemplos de outros países, exemplos históricos. Várias vezes cita outros autores. São todas estratégias que a gente indica para os estudantes para fazer uma boa dissertação argumentativa”, diz C. D. Vieira, professor de literatura no Colégio Magno, em São Paulo.
Os textos são agrupados por blocos temáticos, seguindo uma lógica, com os primeiros tratando dos povos antigos, seguindo para a situação da mulher na Europa, em seguida, nas Américas.
Reflexo da época
Embora tivesse ideias de avançadas, Nísia era uma mulher de seu tempo; seus textos eram permeados pela moralidade cristã. Mesmo sua visão do papel da mulher era muito diferente do discurso feminista atual.
“É possível usar o termo feminismo, porque o movimento já existia, mas com uma ressalva: não defendia as mesmas ideias que feminismo de hoje. Nísia diz, por exemplo, que toda mulher deve casar e ser mãe. São as contradições anos 1800”, afirma Vieira.
Abordagem interdisciplinar
Os temas dos ensaios permitem que a obra seja abordada na Fuvest de forma interdisciplinar; ‘Opúsculo’ pode ser associado a temas do Segundo Reinado e movimento abolicionista em história. Também apresenta ideias alinhadas ao positivismo de Augusto Comte, na área de filosofia.
Há conexões fortes também com a própria escolha de uma lista só de mulheres, para que o estudante reflita o quanto a sociedade mudou. Em literatura, a obra dialoga com “Memórias de Martha”, de Júlia Lopes de Almeida, outro livro cobrado no vestibular da USP.
“Martha vai estudar para poder trabalhar; a educação que a Nísia prega não está tão longe da educação idealizada na cabeça da Martha”, explica Vieira.
Série aborda os livros do vestibular 2026 da Fuvest
Este é o primeiro de uma série de textos que vão abordar a lista de livros do vestibular da USP deste ano. Pela primeira vez, a Fuvest selecionou obras só de escritoras mulheres. A cada semana, uma obra será tema de reportagem que vai explicar a trajetória da autora e os principais pontos que podem ser cobrados na prova.
Os textos fazem parte do projeto Folha Estudantes, criado para ajudar jovens na preparação para o Enem e outros vestibulares. A Folha oferece assinatura gratuita para estudantes que se inscreverem no Enem; clique aqui para saber mais.
Fonte ==> Folha SP