Uma história de amor entrelaçada com uma crítica à repressão política da Era Vargas, às contradições do Partido Comunista e ao moralismo imposto às mulheres nos anos 1930. Assim é “Caminho de Pedras”, de Rachel de Queiroz, uma das obras de leitura obrigatória para o vestibular de 2026 da Fuvest de 2026.
“Repetiam toda hora os ‘camaradas’, afetavam uma simplicidade excessiva, que chocava os outros, os ‘de tamancos’, cheios de preconceitos e convenções. Pois a simplicidade, longe de ser um atributo dos humildes, é um artifício de requintados que a plebe desconhece” — trecho do livro ‘Caminho de Pedras‘
A seguir, saiba mais sobre a obra.
QUEM É A AUTORA
Escritora de romances, contos, peças de teatro, crônicas e textos jornalísticos, além de tradutora, Rachel de Queiroz (1910-2023) nasceu em Fortaleza e publicou seu primeiro livro, “O Quinze”, em 1930, aos 20 anos de idade. Outras obras que merecem destaque são “As Três Marias” e “Memorial de Maria Moura”.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1977, e a receber o prestigiado prêmio Camões, em 1993.
A escritora integrou o Partido Comunista do Brasil, chegou a ser presa pela repressão da Era Vargas e teve livros queimados em praça pública.
Embora não se identificasse como feminista, a cearense foi pioneira na produção literária feminina, destacando personagens mulheres que lutam contra o patriarcalismo. É o caso de “Caminho de Pedras”, seu terceiro romance, lançado em 1937.
“O livro é, em muitos sentidos, autobiográfico, pois mostra uma personagem principal que descobre a consciência política e se engaja para lutar contra as desigualdades“, afirma Miriam Bevilacqua, doutora em literatura e professora no canal Biblion.
O QUE É IMPORTANTE SABER SOBRE O LIVRO
Estilo narrativo e sinopse
O livro tem 27 capítulos, com um narrador em terceira pessoa, onisciente, que dá voz a todos os personagens.
Na história, o jornalista comunista Roberto se muda para Fortaleza com o objetivo de organizar o movimento operário local. Lá, envolve-se com Noemi, militante casada. Após a separação dela, os dois vivem juntos até serem presos. Grávida, Noemi é libertada, enquanto Roberto é exilado. Sem contato com ele, ela tenta reconstruir sua vida sozinha.
Contexto histórico
A narrativa se desenrola no período em que Getúlio Vargas governou o país (1930-1945) e traz à tona a perseguição a militantes comunistas e a censura, situações que Rachel conhecia de perto, devido à sua própria militância. “O livro é considerado pela crítica sua obra mais engajada em assuntos políticos”, explica Heric José Palos, coordenador de português do curso Etapa.
A publicação em 1937, mesmo ano em que se instaurava a ditadura do Estado Novo, confere a essa denúncia social um caráter ainda mais impactante, acrescenta Adriano Soares, professor de literatura do Fibonacci Sistema de Ensino. “A obra funciona não só como uma narrativa literária, mas como um documento histórico, revelando as tensões políticas daquele momento.”
Ruptura do patriarcado
A representação de uma mulher que se envolve com a militância política e abandona seu casamento foi revolucionária para a literatura da época e continua relevante nas discussões contemporâneas sobre gênero, diz Soares.
“A protagonista é complexa, enfrenta o crivo social por suas escolhas, sem passar imune a ele, como ocorre com a perda de seu emprego, o preconceito sofrido e a morte trágica do filho”, afirma.
Conflitos entre operários e intelectuais
É marcante a forma como Rachel retrata os conflitos internos do Partido Comunista Brasileiro, revelando as tensões entre os “tamancos” (operários) e as “gravatas” (intelectuais). Personagens como Vinte-e-um, que nutre desconfiança por Roberto, acusado de ser um intelectual pequeno-burguês, exemplificam as dificuldades de reunir diferentes classes sociais em torno de uma causa política comum.
Movimento literário
Rachel pertence à segunda geração modernista. Segundo Miriam Bevilacqua, as características do movimento podem ser observadas na linguagem clara, no uso da fala coloquial nos diálogos e na liberdade e originalidade de algumas construções.
“Um bom exemplo é quando o guarda-livros Filipe chega ao escritório, abre o livro cheio de números para trabalhar e o narrador diz: ‘Alisou a boca do tinteiro, começou a escrever. Virou máquina’”, aponta a professora.
O título como metáfora
Para Soares, o ‘caminho de pedras’ é uma metáfora tanto da árdua jornada política dos militantes quanto dos desafios pessoais enfrentados por Noemi —que, no clímax do romance, literalmente tropeça em uma ladeira de pedras, refletindo sobre suas escolhas. “Esse recurso literário sintetiza a mensagem principal da obra: a luta por transformação social e libertação pessoal é repleta de obstáculos, mas é um caminho que deve ser trilhado por aqueles que acreditam na possibilidade de mudança”, diz o professor.
SÉRIE ABORDA OS LIVROS DO VESTIBULAR 2026 DA FUVEST
Este é o segundo de uma série de textos que vão abordar a lista de livros do vestibular da USP deste ano. Pela primeira vez, a Fuvest selecionou obras só de escritoras mulheres. A cada semana, uma obra será tema de reportagem que vai explicar a trajetória da autora e os principais pontos que podem ser cobrados na prova.
Os textos fazem parte do projeto Folha Estudantes, criado para ajudar jovens na preparação para o Enem e outros vestibulares. A Folha oferece assinatura gratuita para estudantes que se inscreverem no Enem; clique aqui para saber mais.
Fonte ==> Folha SP