“A senhora quer que eu morra pra não morrer?” – 07/07/2025 – Morte Sem Tabu

A imagem mostra uma mulher idosa com cabelo curto e grisalho, usando uma blusa com estampas em tons de azul. Ela está sorrindo e parece estar em uma conversa, com as mãos levantadas em um gesto de entusiasmo. Ao fundo, há uma pessoa com óculos escuros e uma camisa escura, mas seu rosto não é claramente visível.

O filme “Vitória”, que estreou no último dia 19 de junho no Globoplay, é baseado na história de Joana da Paz, uma ex-empregada doméstica que se tornou massoterapeuta e, da janela da sua casa em Copacabana, no Rio de Janeiro, filmou cenas de violência. Depois, insistiu perante autoridades policiais até que seus gritos de socorro contra tiroteios constantes fossem ouvidos.

Dentro desse enredo, o que mais me comoveu foi a mulher idosa, sozinha e independente lutando para permanecer na casa que, com muito custo, conseguiu que fosse sua.

Um dos meus livros de cabeceira é “Mortais”, do médico Atul Gawande. Nele, o autor diz que “ter um lugar onde você de fato se sente em casa pode ser tão essencial para uma pessoa quanto a água é para um peixe”.

Vez ou outra, alguma amiga me diz que pensa em levar mãe ou pai idosos para morar na própria casa. Eu sempre pergunto: eles querem? E muitas vezes escuto a resposta: “não sei”. No afã de protegermos as pessoas, tiramos delas a autonomia de decidir sobre as próprias vidas. Tiramos delas a dignidade.

Gawande conta o caso de Harry Truman, um homem de 83 anos que se recusava a sair de sua casa, ao pé de um vulcão entrando em erupção. “Se eu perdesse minha casa, ia acabar morrendo em menos de uma semana de qualquer maneira”. Tirá-lo dali era matá-lo de outra forma.

No filme, Dona Nina (Fernanda Montenegro) se depara com o perigo de continuar morando na sua casa, depois de filmar crimes e denunciá-los. Uma delegada a orienta a entrar para o programa de proteção à testemunha, sair da cidade e mudar de nome. Indignada, Nina responde: “a senhora quer que eu morra pra não morrer?”.

O sociólogo francês Vincent Caradec diz que, com o envelhecimento, a pessoa passa a ter o sentimento de não mais pertencer à sociedade em que vive, o que a faz preferir o ambiente com que tem mais familiaridade. A casa é uma referência de identidade, espaço e memória.

Em “Vitória”, Fernanda Montenegro nos faz perceber os detalhes. Não há tempo para distração. Cada meneio de cabeça, cada gesto com as mãos, a alegria discreta ao ouvir uma música, o olhar diferente a cada dor, tudo carrega parte importante da narrativa construída exclusivamente da convicção de uma mulher – e das provas que ela, sozinha, produz. Não é possível assistir ao filme e não se maravilhar com a ideia de viver no mesmo tempo da atriz. O que ela toca ganha vida e sentimento, por poucos que sejam os segundos que uma cena dure.

Logo no início, Dona Nina sofre com a destruição de um objeto, que ela deixa cair ao ouvir os tiros. Não é apenas uma xícara quebrada, é uma violação de identidade profunda. A cena é delicadamente construída para que se perceba que o que Nina sente ao recolher os cacos no chão é um luto por tudo que a violência tira dela todos os dias.

É procurando uma cola para tentar consertar a xícara, que Nina se depara com a filmadora que altera o curso da sua história. Mas, antes, ela precisa reconstruir aquele objeto. E é denso o suspiro aliviado, embora tão contido, ao perceber que os cacos se juntam no lugar certo, enquanto a vitrola toca:”Quando o tempo avisar/ Que eu não posso mais cantar/ Sei que vou sentir saudade/ Ao lado do meu violão/ E da minha mocidade.”

A solidão de Nina é mais central na história do filme do que pode parecer. Sua amizade com Marcinho (Thawan Lucas), um menino pobre que a ajuda e é ajudado por ela, surge daí. Talvez Nina protegesse a criança da mesma forma se houvesse vários filhos e netos ao seu redor. Mas talvez ela nem mesmo tivesse conhecido a criança se o seu olhar não estivesse deslocado do próprio referencial para as pessoas marginalizadas pela sociedade.

Flávio (Alan Rocha), o jornalista que assistiu às fitas de dona Nina e convenceu as autoridades da sua relevância, insiste para que ela aceite proteção. E lhe sugere o nome de Vitória. É só quando uma operação policial é deflagrada, a partir de suas fitas, e que Nina realmente não consegue mais voltar para casa, que ela concorda em sair do Rio de Janeiro. Até então, ela repetia: “não sou bandida pra ter que sair da minha casa”.

O filme mostra o mar que Vitória nunca mais veria. Na vida real, ela morreu muitos anos depois, sem nunca ter retornado ao Rio de Janeiro. Se no filme não sabemos se conseguiu se sentir viva após ser obrigada a sair da sua casa, na vida real sabemos que Joana da Paz se irritava por viver escondida. Fábio Gusmão, o jornalista que inspirou o personagem Flávio, diz que ela “queria o merecido crédito de quem abdicou de uma vida construída com muito esforço, enfrentando a violência desde criança”.

Lembro-me que, em 2021, Fernanda Montenegro, então com 92 anos, disse: “tudo já é meio despedida para mim. Uma hora acaba”. Em março deste ano, quando Fernanda Torres concorria ao prêmio de melhor atriz no Oscar por “Ainda estou aqui”, vencedor na categoria de melhor filme estrangeiro, pensei algumas vezes: é, Fernandona. O fim da vida pode ser mesmo uma das principais partes da biografia de alguém. Olha você aí, viva, para ver sua filha no lugar em que está agora. Nem antes, nem depois. Agora, aos 95.

Que bom que, depois daquela fala em 2021, houve tempo de juntar seu legado ao de Joana da Paz – e quem sabe o que mais ainda vem pela frente. Que bom que o filme, honrando também a memória de Breno Silveira, faz jus àquela vida que Vitória não conseguiu viver plenamente por tantos anos, com privações e angústia. Não sei se Joana pensava que a mudança de rumo que lhe acabou sendo imposta tinha valido a pena. Mas desconfio que, se soubesse quão bonita seria sua representação por Fernanda Montenegro, que ela mesma sonhava que a interpretasse, teria pensado: não é que valeu?



Fonte ==> Folha SP

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