Abigail Disney nasceu com um dos sobrenomes mais simbólicos do capitalismo americano, mas vem dedicando sua vida a contestar o sistema que o consagrou.
Neta de Roy O. Disney, que fundou a The Walt Disney Company com o irmão, Walt, ela foi criada com o conforto de uma vida de classe média alta, até que o patrimônio de seus pais aumentou tanto que eles passaram a ter acesso a luxos como um jato particular com cama queen size.
Incomodada com a ostentação e com o que estava por trás dela, a americana decidiu usar sua visibilidade e sua herança para questionar o acúmulo desenfreado de capital por poucas famílias —inclusive a sua—, defender a taxação dos super-ricos e apoiar projetos sociais voltados para os direitos das mulheres e o combate à pobreza.
Cineasta, filantropa e ativista, Disney, 65, já doou cerca de US$ 70 milhões de uma fortuna estimada hoje em US$ 500 milhões. Ela é integrante do Patriotic Millionaires, movimento de empresários americanos que defendem uma reforma tributária mais rigorosa para os ultrarricos e tem como lema “orgulho de pagar mais”. Recentemente, declarou, em entrevista ao jornal britânico The Guardian, que “todo bilionário que não consegue viver com US$ 999 milhões é uma espécie de sociopata”.
Em 2023, chegou a ser presa durante um protesto contra jatos particulares no aeroporto regional de East Hampton, em Nova York.
Disney também vem criticando publicamente as condições de trabalho e os salários dos funcionários dos parques temáticos criados por seu avô e seu tio-avô e abordou o tema em um documentário que dirigiu, “O Sonho Americano e outros Contos de Fada” (2022).
Mantenedora de uma fundação familiar com o marido, a americana concedeu entrevista à Folha dias antes de vir para o Brasil para participar do congresso do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), maior evento sobre Investimento Social Privado (ISP) da América Latina, que começa na quarta (7), em Fortaleza.
A sra. virá ao Brasil para um congresso sobre investimento social privado. Qual é sua visão sobre filantropia? Que mensagem quer passar?
Sou uma pessoa que sempre esteve ciente da desigualdade contida no simples fato de eu existir —ou seja, de que a minha existência como alguém com tantas vantagens e recursos é uma prova da injustiça que há no mundo. Isso sempre me incomodou, consumiu meu cérebro e meu coração.
A filantropia foi minha maneira de ser mais feliz com a minha vida. Tudo o que fiz no mundo da filantropia me deu tanta alegria e me trouxe tanto significado que não sei como viveria sem isso. Então, tentarei dizer às pessoas que são como eu que, se elas se sentem incompletas, a peça que falta para se sentirem completas é alcançar outras pessoas, compartilhar suas riquezas com elas e permitir-se ser ensinadas por elas.
O Brasil é um dos países com maior nível de desigualdade no mundo, mas, apesar disso, não temos uma cultura de doação forte. Qual deveria ser o papel da elite econômica em um país como o nosso?
Compartilhar não deveria ser uma escolha para a elite econômica. Quando falo em aumentar impostos sobre os ricos, ouço muitos argumentos de que a filantropia resolverá todos os problemas. A filantropia pode mostrar o caminho, pode convidar as pessoas a participar, pode mudar as coisas de formas muito importantes, mas infelizmente não pode resolver os problemas profundos em países altamente desiguais, como os EUA ou o Brasil.
Precisamos pensar diferente sobre a forma como os ricos participam da sociedade. Precisamos parar de idolatrar os ricos. Precisamos parar de pensar que eles sabem mais e parar de acreditar neles quando dizem que sabem mais.
Eu vivi o suficiente para ver meu país mudar de forma fundamental. Os EUA já foram um lugar muito menos injusto economicamente, mas as desigualdades foram crescendo até se tornar parecido com o Brasil.
Costumava haver um contraste entre nós, mas agora estamos muito próximos e temos muitos dos mesmos problemas: uma elite muito poderosa tomando decisões sobre o governo, sobre as estruturas tributárias e outras estruturas econômicas —e, na América, de forma muito egoísta. Estamos vivendo, nos EUA, um pesadelo que vem sendo construído lentamente há 50 anos. Tem sido como um gigante rolando morro abaixo, destruindo tudo no caminho.
Acho que brasileiros e americanos temos muito o que conversar sobre como desfazer essa estrutura, como unir as pessoas e usar os recursos que estão alinhados com essa visão para descentralizar poder, propagar conhecimento e fazer essas mudanças.
No Brasil, a Câmara dos Deputados rejeitou a inclusão de um imposto sobre fortunas acima de R$ 10 milhões na reforma tributária. Por que esse tipo de medida enfrenta resistência?
Existe um sistema de crenças enraizado de que os ricos devem ser muito ricos. Os EUA difundiram essa crença pelo mundo, que está conectada com o pensamento neoliberal propagado a partir dos anos 1970. Isso inclui a ilusão de que qualquer indivíduo de classe média pode enriquecer se trabalhar duro o bastante e fizer tudo de acordo com as regras.
Escrevi muitos artigos de opinião em jornais defendendo o imposto sobre herança. As mensagens mais raivosas que recebo são de pessoas que não se qualificariam para esse imposto, que não têm dinheiro suficiente para pagá-lo nem nunca terão. Acho incrível isso, mas é que existe essa ideia de que, “se eu algum dia tiver esse dinheiro, não pagarei essa taxa”.
Fomos levados a acreditar que todo imposto é ruim, que é um dinheiro que é tomado de você, que o governo não é confiável para gerir esse dinheiro. Mas é um valor que você paga para a sociedade que torna sua vida possível.
A sra. chegou a ser presa em um protesto contra jatos particulares. Qual é a contribuição dos ricos para a crise climática?
Eu falo sobre jatinhos em parte porque eu costumava viajar em um deles. Em certo momento, ficou impossível para mim continuar fazendo isso, porque eu sentia o quão profundamente errado era. E eu comecei a me perguntar: como alguém pode se sentir confortável fazendo isso? Como dorme à noite, sabendo o que está por vir? [A crise climática] já está acontecendo na nossa frente, e quem nega isso está mentindo. Então é hora de parar de ocupar tanto espaço, de parar de tomar para si os poucos recursos que nos sobram.
Eu falo sobre jatinhos em parte porque eu costumava viajar em um deles. Em certo momento, ficou impossível para mim continuar fazendo isso, porque eu sentia o quão profundamente errado era.
A sra. tem um sobrenome mundialmente famoso e já disse que sentia vergonha dele. Quando começou a ser um incômodo?
Sim, eu cheguei a mentir sobre meu sobrenome, porque, quando você é jovem, você só quer ser como todo o mundo, e esse sobrenome é como ter um cifrão na sua testa. Era algo que me incomodava de uma forma que eu não entendia profundamente.
Com o passar do tempo, percebi que não se tratava apenas de como as pessoas me olhavam, mas sim de como eu escolhia me relacionar com o mundo. E eu não queria fingir que estava tudo bem. Porque eu represento a desigualdade que não é normal, mas passamos a aceitar como normal e que está sempre crescendo. Então, eu me vi na obrigação de me colocar de uma forma diferente no mundo.
Por eu ter um nome tão famoso, as pessoas exageram tudo o que eu digo e tornam aquilo maior do que é. Acredito que, se você tem esse poder, mesmo que não o tenha conquistado ou solicitado, você deve usá-lo para tentar mudar as coisas. Se eu posso influenciar as pessoas por causa do meu nome, é isso que eu quero fazer.
A sra. vem reivindicando melhores condições de trabalho para os funcionários da Disney. Houve alguma mudança?
Eu já trabalhava a problemática da desigualdade havia muitos anos quando um funcionário da Disney me enviou uma mensagem no Facebook. Percebi, então, que, se eu não abordasse a fonte do meu dinheiro, quem seria eu para dizer qualquer coisa sobre o resto?
Certamente é uma empresa muito maior do que eu, mas seria uma mentira dizer que eu não tinha poder nenhum. O fato de você não conseguir consertar alguma coisa completamente não lhe dá desculpa para não tentar algo, mesmo que pequeno. Então, eu fiz o filme “O Sonho Americano” e comecei a falar sobre isso.
Duas semanas atrás, estive em um evento em Orange County, onde fica a Disneylândia, e o sindicato deles negociou, pela primeira vez, o melhor contrato que já tiveram. Não quero levar o crédito por isso, acho que eu só ajudei, mas estou muito feliz e orgulhosa de ter uma pequena parte nisso. Quero que as pessoas saibam como é bom decidir fazer algo que parece impossível e alcançar aquele objetivo. É melhor do que qualquer coisa que o dinheiro pode comprar.
O que acha que seu avô pensaria das suas crenças e do seu ativismo?
Acho que meu avô ficaria bravo comigo porque ele odiava sindicatos. Os dois eram contra sindicatos, Walt e Roy, porque cresceram nos anos 1930, 1940, quando o comunismo gerava muito medo nas pessoas. Os conservadores americanos acham que qualquer coisa que se faz coletivamente é comunista, há uma histeria em torno disso.
Meu avô e meu tio-avô pagavam bem aos funcionários e os tratavam bem, mas não porque acreditassem que eram direitos dos trabalhadores. É porque eles eram paternalistas. Eram excelentes paternalistas, diga-se de passagem, mas a política deles acabou sendo problemática.
Aprendi com meu avô que você pode ser empresário e pode ser bom, gentil, generoso. Tudo isso está acessível para qualquer empresário, mas todo dia eles escolhem não ser bons, gentis ou generosos. Seria muito bom para os trabalhadores se os empresários decidissem ser pessoas melhores, mas infelizmente também não acho que isso seja suficiente, e por isso a lei também precisa forçar uma certa dose de humanidade, em forma de organização coletiva e sindicatos.
Eu faço pressão pelas duas coisas, porque acredito em ambas. Acredito que um capitalista pode e deve se comportar melhor, mas também sei que isso nunca será suficiente para garantir que seja feito o que é certo para todos os trabalhadores.
Como seus irmãos e seus primos, netos de Walt, reagem a suas declarações?
Meus irmãos me apoiam —não completamente, mas majoritariamente. Já meus primos e eu não temos um bom relacionamento. Eles ficam bravos por eu criticar o tio Walt, e me sinto péssima por isso entristecê-los. Sei que eles o amavam, que ele era um avô carinhoso, mas eu acredito que duas coisas diferentes podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, e as duas coisas são verdadeiras sobre meu tio Walt. Ele era um homem gentil e generoso, mas que também tomou atitudes e fez escolhas que foram dolorosas para pessoas não brancas, para seus trabalhadores e para os EUA durante a Guerra Fria.
Isto é o que eu gostaria de dizer aos meus primos: eu não estou criticando o tio Walt por achar que ele era uma pessoa horrível e irredimível, mas quero poder dizer a verdade sobre o que eu sei.
Meu tio Walt era um homem gentil e generoso, mas que também tomou atitudes e fez escolhas que foram dolorosas para pessoas não brancas, para seus funcionários e para os EUA durante a Guerra Fria.
Como educou seus quatro filhos para lidar com o sobrenome famoso e com o dinheiro em geral?
Acredito profundamente que, para qualquer criança, a generosidade não pode ser opcional. Meus filhos não querem que eu fale sobre eles, mas posso dizer que tenho muito orgulho deles porque são pessoas gentis, generosas, respeitosas e que acreditam profundamente na justiça.
Em relação ao sobrenome, eles podem escolher usar ou não o nome do meio [Disney]. Um deles quis mudar porque não queria tê-lo e eu achei uma escolha muito razoável e o apoiei nisso. É algo desconfortável de carregar, e eu nunca os forçaria a fazê-lo.
A sra. herdou um legado que te trouxe incômodo e questionamentos. Que legado gostaria de deixar?
Acho que o máximo que uma pessoa pode esperar é conseguir mudar um pouquinho o mundo em direção ao que é certo. Atualmente, as pessoas erradas estão vencendo, então teremos que lutar muito. Não acho que vou vencer nenhuma batalha, mas espero ser uma pessoa que inclina o mundo na direção certa e que incentive as demais a fazer o mesmo.
Abigail Disney, 65
1960, Los Angeles – Formada em literatura inglesa na Universidade Yale, é doutora em filosofia, cofundadora da produtora de documentários Fork Films e vencedora de um Emmy. Mantém a Daphne Foundation, fundação familiar que investe em ONGs de combate à pobreza e à discriminação
Esta reportagem foi produzida para a Causa do Ano: Doar É Transformar, que conta com apoio do Movimento Bem Maior.
Fonte ==> Folha SP