Arte negra: reflexões e memórias – 01/06/2025 – Opinião

homem negro de óculos escuros e careca sentado

Aqui do meu cantinho, sentado, refletindo sobre a vida, mergulhado em minhas memórias, lembro que nasci num lugar chamado Baixa do Gantois, em Salvador, ouvindo o som dos batuques que vinham de lá do alto. De um lado, os tambores de ensaio da Juventude do Garcia, uma famosa escola de samba existente nos anos 1960; do outro, o ecoar dos atabaques do candomblé de Mãe Menininha do Gantois, revelando o som do sagrado religioso dos orixás.

Às vezes tenho a impressão de que aqueles sons eram para embalar o meu sono. Bem antes de perceber o significado de mundo, cresci entendendo que a minha pele negra carregava histórias de muitos que sofreram e preferiram esquecer, o que fez aguçar bastante a minha curiosidade a respeito do assunto.

Entendi que os sons que ouvia quando criança faziam parte da história deste país —o que me deixava muito feliz era poder escutar as músicas dos meus ídolos negros fazendo sucesso. No entanto, percebia que eles rapidamente desapareciam, o que me fez entender que a arte negra, mesmo sendo agradável para muitos, não era aceita nos espaços públicos, ocupando pouco ou quase nenhum destaque nos meios de comunicação.

Comecei a compreender a sutileza do racismo e suas formas de manifestação no meio artístico. Foi quando reconheci que o samba era parte importante da vida cultural brasileira, e mesmo que a sociedade consumisse, cantando, dançando e divertindo-se nas festas momescas, ainda assim não era permitido o acesso do ritmo a outros ambientes —a não ser quando conveniente, sendo usado como entretenimento.

Assim como os sons que vinham dos templos sagrados de matriz africana, que por tanto tempo foram perseguidos e impedidos de praticar suas atividades religiosas —tal como a capoeira, que depois de séculos de perseguição virou patrimônio imaterial da humanidade.

Por isso, a arte negra brasileira precisou se fazer firme e resistente para sobreviver e manter-se forte perante um racismo que agia cotidianamente, intolerante e persistente, através das inúmeras tentativas de apagamento dos nossos artistas negros. E o mesmo ocorreu na desvalorização da cultura ancestral.

Quando jovem, aprendi que a música era muito mais do que mero entretenimento. É a arte dos deuses, fazendo pontes, mapas, abrigos, conexões, espadas cortantes; abrindo caminhos e quebrando grilhões.

Cantar é, para mim, o poder de usar a voz como um gesto político. Através do ritmo da palavra poética, dizer em harmonia o que tantas vezes nos negaram, a presença dos nossos corpos. Samba, lundu, maracatu, ijexá e jongo nasceram nos porões da exclusão, mas explodiram como luz de quem carrega séculos de ancestralidade na alma.

A grande contradição é constatar que o país que aplaude é o mesmo que hesita em reconhecer quem a produz. Ainda assim, a arte negra não pede licença. Ela entra, transforma e permanece viva, existindo e resistindo, servindo de exemplo para os novos talentos que surgem atentos, na linha de frente, buscando sempre dar o seu melhor, fazendo fluir a sua maior qualidade.

O mercado nos ama como consumidores, mas teme a nossa consciência como pensadores. Constatamos isso quando reconhecemos que o samba nunca foi classificado como música popular brasileira —ou ainda o reggae, que não conseguiu permanecer no mercado por conta do poder de suas letras. Por isso, nos juntamos nas rodas de samba, nas batalhas de rap nas praças e nos palcos da vida, para fazer deles o nosso quilombo de resistência.

Porque ser artista negro no Brasil é carregar no peito a alma de um povo que continua superando e resistindo, sem esquecer o peso de séculos de silenciamento sem nenhuma reparação. É pegar o microfone e ser raiz, sangue e construção de uma nova realidade, reescrevendo uma outra história, que se reinventa na luta e na coragem e se ergue no amor!


E assim segue a arte negra brasileira, cumprindo sua missão ancestral como instrumento de resistência e consciência social, tendo a música, a literatura, o teatro e o esporte papéis relevantes. Desvendamos histórias e revelamos verdades, como a nossa afro-indígena ainda ignorada no país que construímos —e que continua na eterna negação, mantendo-se adormecido e inerte, debruçado num delírio eurocêntrico, sem querer reconhecer que é preciso que sejamos muito mais que uma simples nação para praticarmos a vivência, sem perder a essência, promovendo equidade, fazendo valer a igualdade e respeitando, sempre, as diferenças.

Acorda, Brasil! E mostra a tua cara! Com certeza, amanhã seremos um outro país renascendo para um novo dia. Axé!

TENDÊNCIAS / DEBATES

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Fonte ==> Folha SP

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