As muitas peles da alma

As muitas peles da alma

Naquela manhã acordei com a sensação de que não era mais o mesmo. O espelho me devolveu um rosto conhecido, mas os olhos pareciam ter mudado de cor durante a noite. Não era a primeira vez. Raul já cantara sobre isso: “prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Na padaria da esquina, onde tomo o café, Gérson, o garçom, me cumprimentou pelo nome, como sempre. Eu sorri, mas por dentro pensei: “se ele soubesse que hoje eu não sou o mesmo de ontem…”. A vida nos obriga a usar certas roupas sociais, mas por baixo delas a pele se renova, as ideias se transformam, e o que era verdade vira apenas um rascunho do que ainda está por vir.

No trabalho, falaram de política, e eu ouvi em silêncio. Ontem, eu teria defendido minhas convicções com unhas e dentes. Hoje, porém, elas me pareciam roupas velhas, apertadas demais para um corpo que cresceu. Um colega me perguntou: “você não vai opinar?” Eu respondi com outra pergunta: “E se minha opinião for não ter opinião?” Riram, achando que era piada.

À noite, caminhando pela rua vazia, senti como se o vento levasse embora pedaços de mim. Não era tristeza, era liberdade. Raul sabia disso, que a única forma de não morrer é nunca ficar inteiramente pronto. Deixar que o vento remonte nossos cacos, mesmo que o desenho jamais seja o mesmo duas vezes.

Cheguei em casa, olhei novamente no espelho. Desta vez, reconheci menos ainda o rosto refletido. E, no fundo, isso me alegrou. Porque quem se encontra completamente já não está mais vivo, está apenas esperando o fim.

E eu? Eu ainda sou uma longa estrada de mudanças. Ambulante, metamórfico, infinito.

(Crônica em homenagem ao inesquecível Raul Seixas)



Fonte ==> Bahia Notícias

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