Será renovada nesta quinta-feira (24) a medida que acelera o pedido de processo de refúgio no Brasil para meninas e mulheres vindas de países com alta prevalência de corte ou mutilação genital feminina.
Criado há dois anos pelo Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), o reconhecimento prima facie concede refúgio ao avaliar que há evidências suficientes para comprovar violação de direitos humanos no país de origem. A medida estava suspensa desde o final de março e aguardava pela renovação.
Mais de 230 milhões de mulheres e meninas foram submetidas à mutilação genital em 90 países, segundo o UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas, na sigla em inglês). O ritual, mais comum na África, Ásia e no Oriente Médio, é ligado a ideias de pureza sexual, obediência e controle —e reconhecido internacionalmente como grave violação de direitos.
“O reconhecimento prima facie permite pular a etapa da entrevista, que é bastante demorada e, como se trata de um trauma, pode até revitimizar a mulher ou menina”, diz Amarilis Tavares, coordenadora-geral do Conare, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Com o benefício, o tempo do processo de análise de refúgio, que duraria pelo menos dois anos, pode cair para pouco mais de um mês.
A medida vale tanto para mulheres alvo da prática em seus países quanto para aquelas perseguidas e que fugiram de seus países, bem como para “cortadoras” que não querem mais praticar a mutilação.
“Não importa se elas se consideram ou não vítimas ou mesmo se o pedido de refúgio está fundamentado nessa violação ou perseguição. A vítima às vezes não sabe que é vítima”, afirma Tavares.
O Conare mapeou países em que o ritual acontece, levando em conta se é realizado em todo o território e por quais grupos étnicos. E considerou que a prática é equivalente à tortura, com consequências físicas e psicológicas. Pode levar à mote, ao desencadear infecções, hemorragias e dor intensa.
A medida adotada pelo governo brasileiro reforça o compromisso de enfrentamento à violência de gênero em uma perspectiva global. “O corte e a mutilação genital feminina não são tolerados no Brasil”, afirma Tavares.
A mutilação costuma ser feita nos primeiros dias após o nascimento, durante a infância, no momento do casamento, durante a primeira gravidez ou após o nascimento do primeiro filho.
De acordo com a ONG Equality Now, 59 dos 90 países têm leis específicas que proíbem o ritual, mas a erradicação esbarra em fatores culturais, sociais e religiosos.
“Classificar como crime não é suficiente, pois o hábito está dentro do contexto familiar”, avalia Cecilia Mello, advogada criminalista e juíza federal aposentada.
Segundo ela, a erradicação efetiva requer campanhas de conscientização e fortalecimento dos direitos de mulheres e meninas —e para além dos países onde ela acontece, como no Brasil, destino de imigrantes de regiões onde há mutilação.
Em 2024, o Brasil recebeu 194.331 migrantes, dos quais 13.632 (7%) foram reconhecidos como refugiados, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Entre eles, mais de 12 mil são da Venezuela, 283 são do Afeganistão, 121 da Colômbia, 111 da Síria, entre outros.
Há pelo menos 68 mil processos de refúgio aguardando análise do Conare, dos quais 40% são de mulheres.
“É essencial que o Brasil participe ativamente desse diálogo global, promovendo campanhas sobre a violência de gênero e a importância dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.”
A advogada lembra que não há no país equipamentos públicos de saúde destinados ao acolhimento dessas mulheres, embora elas tenham acesso ao SUS (Sistema Único de Saúde) ao serem reconhecidas como refugiadas.
No entanto, não há leis brasileiras que combatam a mutilação. “Não tem nada específico em lesões corporais sobre mutilação de órgãos sexuais. O que temos é a possibilidade de aumento de pena em até um terço no contexto da Lei Maria da Penha”, diz Cecilia Mello.
O dermatologista Luiz Perez, que atua com tratamentos íntimos, conheceu o tema em um curso nos Estados Unidos, em 2016.
“Achava que era algo anedótico, costume de algumas tribos, não algo amplamente praticado. Voltei desnorteado”, lembra ele. “Hoje não atendo pacientes que sofreram mutilação intencional, mas atendo outras tragédias.”
Perez realiza cirurgias reparadoras em casos de sequelas de cirurgias estéticas de regiões íntimas, como mulheres que optaram por retirar parte da vagina, como os pequenos lábios, e tiveram complicações. “É uma amputação, a mucosa fica exposta”, diz ele.
Ou então casos de vaginismo ligados a abusos na infância. “É um sofrimento, a pessoa não consegue ter relação sexual sem dor, e é uma doença mal abordada nas consultas. Já ouvi de pacientes que o profissional falou para usar lubrificante e tomar vinho, como se fosse normal sentir dor.”
Uma das maneiras de apoiar mulheres que passam por processos semelhantes à mutilação, diz Perez, é o diálogo e acompanhamento psicológico. “O impacto tem muitos graus, dos mais óbvios aos mais sutis.”
Fonte ==> Folha SP