O brasileiro de hoje tem valores muito próximos aos de três décadas atrás.
É o que argumenta o cientista político e sócio-fundador da Quaest, Felipe Nunes, em “Brasil no Espelho”, novo livro a ser lançado pela Globo Livros. A obra reúne resultados da maior pesquisa já feita pelo instituto sobre ideias e crenças, com quase 10 mil entrevistas realizadas em novembro e dezembro de 2023.
Ao comparar esses dados com séries internacionais de longo prazo, Nunes recorre a um mapa de concepções: de um lado, a importância de religião, família e tradição; de outro, a valorização de bem-estar, confiança e tolerância.
O Brasil avançou nesse segundo sentido nos anos 2000, mas, com as crises da última década, retornou a priorizar o primeiro. “Mudanças muito rápidas fizeram as pessoas voltarem a se fechar”, disse à Folha.
Nos últimos dez anos, acumulam-se eventos como o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão do então ex-presidente Lula (PT), a Copa do Mundo, o crescimento da direita e dos evangélicos, a universalização das redes sociais, crises econômicas e a pandemia de Covid-19.
A rotina se tornou quase um sinônimo de insegurança e reconduziu brasileiros a respostas mais conservadoras, segundo Nunes.
“Em épocas de abundância, com segurança física e emocional, as sociedades tendem a se liberar das tradições e se permitir ser mais autoexpressivas. No nosso caso, tudo que a gente tinha conquistado até 2013, 2014, acabou voltando atrás.”
A obra também usa os valores como base para classificar os brasileiros em nove segmentos identitários, definidos pela combinação de crenças e interesses.
Os cidadãos são agrupados conforme a probabilidade de pertencerem mais a um grupo. Eles têm, portanto, concepções que se sobrepõem, mas perguntas específicas têm peso maior que as outras na definição.
Os conservadores cristãos surgem como o maior segmento, com 27%. É formado majoritariamente por evangélicos e por católicos praticantes, que votaram em massa em Jair Bolsonaro (PL) nas duas últimas eleições e que se distanciam sistematicamente do PT.
É o recorte que Nunes usa para contextualizar a escolha de Lula por Jorge Messias, um evangélico, para o STF (Supremo Tribunal Federal), mesmo com o presidente sob pressão para indicar uma mulher negra à vaga.
A lealdade política do advogado-geral da União foi o fator preponderante na opção. No entanto, diz o cientista político, trata-se de um movimento que vai além do cálculo de cargos e votos. Messias, afirma, é ao mesmo tempo, uma construção individual de Lula e “uma construção coletiva da igreja evangélica”.
Apenas 3% dos brasileiros se enquadram na extrema direita, segundo a obra. Quem está nesse núcleo defendeu nas entrevistas a ideia de que um regime autoritário pode ser melhor do que a democracia.
“Se tem uma coisa que esse livro tem que fazer é ajudar a gente a dar o nome certo para esse negócio que chama extrema direita”, diz Nunes. São 6 milhões de brasileiros. “É muita gente, mas, perto do total de brasileiros, é pouco.”
A maioria dos eleitores bolsonaristas, muitas vezes tratados como sinônimo da extrema direita, pertenceriam a grupos distintos. Inflar artificialmente o tamanho desse núcleo mais radical, afirma, torna o debate público mais polarizado do que a realidade.
Para o pesquisador, há um contingente expressivo de eleitores conservadores não extremistas sendo negligenciado, o que produz erros estratégicos por parte da classe política.
O fundador da Quaest chama de “dilema do Doria” o receio que políticos têm de repetir a trajetória do ex-governador de São Paulo João Doria —que, eleito na dobradinha “Bolsodoria” em 2018, perdeu relevância após romper com Bolsonaro durante a pandemia.
Esse estigma é hoje mais fantasma do que risco concreto, segundo o Nunes, com o ex-presidente preso e a influência de sua família deixando de ser unanimidade mesmo dentro da direita.
“Sair do bolsonarismo diminui as chances de ir ao segundo turno das eleições. Por outro lado, ficar no bolsonarismo quase garante ir ao segundo turno, mas, ao mesmo tempo, quase garante perdê-lo”, diz.
O equívoco se repete no campo da segurança pública. O livro descreve um país que demanda penas mais duras como resposta à violência, mas rejeita a pauta do armamento civil. Insistir nessa agenda, que mobiliza sobretudo a extrema direita e parte do agro, teria sido um erro do bolsonarismo.
“O país não quer armar a população”, afirma.
Discursos que exaltam o mérito próprio e a ideia de que o Estado não garante mobilidade social soam bem aos ouvidos do brasileiro médio e atravessam diferentes grupos sociais, diz a obra. A associação a Pablo Marçal é inevitável.
O influenciador e empresário, candidato a prefeito de São Paulo pelo PRTB em 2024, terminou o primeiro turno com 28% dos votos, embalado por uma plataforma em tom bélico, um império digital de cortes e símbolos caros a esse imaginário: defesa da família patriarcal, de uma vida regida por Deus e do livre mercado. Vendeu-se como o único a enfrentar “o sistema”.
“Quando estava escrevendo o livro, vi o Marçal e falei: aquilo que o brasileiro está me dizendo lá nos dados o Marçal está entendendo agora”, diz Nunes.
“Brasil no Espelho” mostra que a combinação de religião como orientação, família como apoio, valorização do esforço individual e cansaço com as condições de vida cria um terreno fértil para esse tipo de liderança política prosperar.
À Folha Marçal, condenado à inelegibilidade pela Justiça Eleitoral, afirmou torcer para o aparecimento de um novo outsider em 2026. Nunes avalia que esse espaço permanece aberto e pode ser ocupado em escala nacional.
Fonte ==> Folha SP
