O cacique Raoni Mẽtyktire foi cotado para o Nobel da Paz, esteve com quase todos os presidentes do Brasil desde a redemocratização —exceção a Jair Bolsonaro (PL)—, conheceu reis, conversou com papas, sobreviveu à Covid-19, lutou por demarcações de terra e se tornou a maior liderança indígena do país.
O pajé inicia agora seu último ato. À Folha, Raoni falou sobre sua despedida, a passagem de bastão à geração mais jovem e, pela primeira vez, em nomes para sucedê-lo.
“Nos meus sonhos eu os vejo [os jovens] e fico preocupado com eles. Por quê? Porque assim que eu deixar eles, no dia em que eu partir, eles não estarão bem. Eles estão mais aprendendo ritmos da cultura dos brancos —e esquecendo a nossa”, diz Raoni.
“Eu falo para eles não serem assim, para defenderem as terras, os rios, o povo. Isso que eu falo para eles”, completa, expressando sua tristeza com o que chama de desunião na sociedade atual e entre os povos.
A conversa com a Folha aconteceu em razão do lançamento de seu livro “Memórias do Cacique” (Companhia das Letras) e foi mediada pelo editor, Ricardo Teperman, e traduzida por Patxon Mẽtyktire, um de seus netos.
A obra é um dos passos de sua preparação para seus últimos atos na terra e é repleta de mensagens às novas gerações, com um tom entre a crítica e a frustração —e inclui a promessa de ainda atuar nas eleições de 2026.
Raoni é do povo mẽbêngôkre (conhecido como kaiapó), especificamente do subgrupo mẽtyktire, e estima-se que ele tenha hoje 88 anos —quando nasceu, na região mato-grossense da amazônia, seu povo ainda não havia feito contato com os “kubẽ”, os não indígenas, e ele não foi registrado.
Pelo menos desde a década de 1970, ele figura entre as principais lideranças indígenas. Ficou mundialmente reconhecido sobretudo com as campanhas pela criação do Parque do Xingu e contra a construção da usina de Belo Monte.
Nos últimos anos, dedicou-se a construir sua sucessão, a partir de assembleias com pajés, caciques e lideranças de diversos povos, além de conversas com os espíritos que guiam sua trajetória.
Até aqui, porém, ele nunca falou abertamente sobre ter decidido nomes neste processo.
Em 2023, dias após subir a rampa do Palácio do Planalto com Lula (PT), a Folha o questionou sobre passar o bastão. “Eu queria que alguém fizesse esse trabalho, para eu descansar, mas como não existe, preciso, enquanto eu puder, fazer o trabalho”, disse, à época.
Raoni, pela primeira vez, menciona nomes que ele mesmo já definiu para ocuparem seu lugar e cita dois de seus netos de consideração (não sanguíneos) que também são lideranças da região do Xingu.
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“Os espíritos estão sempre comigo, à noite eles vêm me visitar. Uma vez, um grupo veio me visitar, eram muitos, espíritos do céu e da terra. Eles me perguntam sobre a minha escolha de algum neto para me suceder. E eu os apontei Yabuti e Tay. Muitos apoiam eles, e eles ficaram contentes com esses netos que eu anunciei”, diz.
Centrais na cultura e na tradição mẽbêngôkre, a relação entre os mais velhos e os mais novos e a transmissão de conhecimento entre gerações são uma das espinhas dorsais do livro de Raoni —e também um dos motivos de frustração dele com as jovens lideranças.
Em sua própria língua, as palavras que definem parentesco não necessariamente fazem distinção sanguínea. “Tàpdjwỳ”, por exemplo, pode se referir a filhos, sobrinhos, netos e bisnetos. Toda a tradição de seu povo é atravessada pela transmissão do conhecimento do ancião para o mais novo.
Como relata Raoni, tudo é criado pelo poder de Iprẽre, mais velho, a partir da interação com seu cunhado mais novo, Ôjropre. Desobedecer as instruções do ancião molda as características do planeta e também alguns de seus problemas.
A obra traça uma espécie de imagem que o cacique quer deixar de si como legado. Ele aconselha as novas gerações a prezarem pela paz, protegerem a floresta e cuidarem do seu povo.
E, em outros momentos, queixa-se que os jovens esquecem as tradições e culturas ensinadas pelos ancestrais, priorizam a cultura dos brancos e nem sequer reconhecem a história quase centenária do próprio cacique na luta pela preservação da floresta e da existência indígena.
“Essa minha luta a nova geração não reconhece, não sabe do meu trabalho”, relata, no livro.
“Ainda me sinto forte para continuar lutando, mas meus netos devem assumir essa luta”, completa.
Seu bastão, porém, deve ser passado para um grupo que ocupe seu espaço, quando ele se afastar, e alguns nomes são citados entre os indígenas como os protagonistas deste processo.
Megaron Txucarramãe, sobrinho de Raoni, é tido entre as lideranças como líder deste coletivo. Também são citados, por exemplo, seus netos que participaram da construção de seu livro de memórias: Paimu Muapep Trumai Txukarramãe, Patxon Mẽtyktire e Beptuk Metuktire.
Kokonã Metuktire (filha e vice-presidente do Instituto Raoni) e Mayalu Kokometi Waura Txucarramãe (neta e diretora da entidade) também são mencionadas, mas os indígenas admitem que há resistência pelo fato de serem mulheres.
Fonte ==> Folha SP