O aposentado Cláudio Rodrigues Reis, 71, é santista de nascença e de torcida. Ele se lembra com clareza dos feitos de Pelé e também de como era o tempo em Santos na sua juventude. “Antigamente, se fizesse calor, era calor. Se fizesse frio, era frio até o fim. Não emendava estação”, diz.
O morador do asilo São Vicente de Paulo, no bairro do Macuco, em Santos, acredita que a explicação para o aquecimento global vem das escrituras e dos astros. “É o fim dos tempos”, afirma. Mas há explicação científica para o calor de que ele fala. Em 2023, pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que a ocorrência de eventos extremos de temperatura aumentou 84% no litoral de São Paulo entre 1980 e 2020.
As mudanças climáticas atingem as zonas costeiras de uma forma diferente. O principal motivo é a evaporação da água do mar. “Uma vez que a temperatura aumenta, a umidade do ar também sobe por causa do calor”, diz Bruno Meirelles, doutor em ciência ambiental pela USP. Essa combinação é perigosa especialmente para crianças e idosos, que têm mais dificuldade em regular a temperatura corporal.
A umidade alta reduz a eficácia da transpiração, que é essencial para regular a temperatura do corpo e fica mais comprometida com o avanço da idade. Essa situação acontece com boa parte da população de Santos, cidade com maior proporção de idosos no país entre os municípios com mais de 100 mil habitantes. Pessoas com mais de 60 anos são 25% da população da cidade, segundo dados do Censo 2022 do IBGE, ou seja, são 105 mil idosos vivendo os efeitos da mudança climática.
Em Santos, durante as ondas de calor do ano passado, os termômetros ultrapassaram os 40ºC, e a sensação térmica, os 50ºC. Em dias assim, as enfermeiras do asilo São Vicente de Paulo se esforçam para manter os moradores hidratados, o que exige mudanças no cardápio e nas atividades. “Colocamos mais frutas, sucos, gelatinas e sorvete, que eles gostam bastante. Eles ainda têm resistência a se molhar, não gostam do gelado, mesmo com um calor extremo”, diz a enfermeira Camila Silva.
Segundo o geriatra Marco Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, há três alterações-chave que acontecem no corpo dos mais velhos, afetando a regulação térmica. “O idoso sente menos sede, então bebe menos líquido e fica desidratado; sua menos, então perde menos calor para o ambiente; e sente muito frio, então está sempre agasalhado”, explica.
O médico reforça que refrigerante e suco de caixinha não hidratam. Bebidas quentes, como chá e café, também não são indicadas, porque fazem o corpo perder mais água ao suar. Ele recomenda que atividades físicas sejam praticadas no início da manhã ou da noite, para fugir das temperaturas extremas. “Pode parecer óbvio, mas esses lembretes fazem a diferença”, diz.
Para Maria Beatriz do Nascimento, 73, até os horários mais frescos se tornaram insuportáveis no verão. “Antigamente, a gente podia caminhar na praia, não tinha problema. Agora, não me arrisco mais. O dia já acorda abafado, com aquele ar pesado”, afirma.
Nascida em Santos, a aposentada diz que o calor a faz perder a vontade de sair de casa. “Quando saio, vou ao shopping, que tem ar-condicionado. Acabo perdendo esse contato com a natureza, e aqui é tão lindo, tão bom”, afirma. Beatriz diz que, apesar da pressão alta, nunca chegou a passar mal durante o calor. Mas, para pessoas com mais fatores de risco, o cenário é ainda mais perigoso.
“Comigo, tudo acontece no verão”, conta Ceci Rosa, 81, moradora do bairro Areia Branca, em Santos. O verão ao qual ela se refere já não é restrito aos três primeiros meses do calendário. Ela diz sofrer ao longo do ano quedas de pressão com as ondas de calor, que pioram seus quadros de asma e bronquite. “Eu ligo o ventilador e ponho uma bacia de gelo do lado da minha cama para poder respirar”, afirma.
A saúde mental dos mais velhos, especialmente a dos mais vulneráveis, também fica comprometida durante as ondas de calor. Enquanto cuidava de sua irmã, que tinha esquizofrenia e déficit cognitivo grave, Ceci percebeu que as altas temperaturas pioravam os humores dela e deixavam a tarefa mais desafiadora.
“Ela ficava agitada, mais sensível. Eu dava bastante água, como o médico mandou, e ela me ofendia, fazia cada coisa errada. Se eu ligava a televisão, ela jogava o que estivesse perto até eu desligar”, diz.
Segundo a psicóloga especializada em envelhecimento Kátia Ploner, o calor pode agravar quadros de ansiedade e depressão ao afetar o sono, aumentar o desconforto físico e reduzir a interação social. Além disso, o estresse climático tende a intensificar a sensação de prostração e inutilidade, prejudicando a concentração e a autoestima.
A irmã morreu há três anos, e desde então Ceci mora sozinha. Ativa na comunidade, ela participa de todas as atividades ofertadas pela equipe da Policlínica da Areia Branca, unidade municipal de saúde da qual ela é paciente. Desde o início do ano, ela tem a pulseira do Televida, iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde. O programa acompanha 500 pessoas com mais de 60 anos que vivem sozinhas em Santos.
A pulseira tem um botão de emergência que aciona de imediato a central de atendimento, disponível 24 horas. Os atendentes, então, orientam o paciente e contatam familiares, além do Samu, Corpo de Bombeiros e polícia, se necessário.
Ceci, habituada a cuidar das pessoas ao seu redor, luta pelo bem-estar dos idosos da vizinhança. O ar-condicionado dos consultórios da policlínica, por exemplo, é uma de suas conquistas. Segundo ela, antes do equipamento, houve dias em que os médicos dispensavam as pessoas na fila do atendimento porque o calor só piorava as condições dos pacientes.
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O objetivo atual de Ceci é colocar uma placa contra o acúmulo de lixo na esquina da clínica, propício para a formação de criadouros de dengue. A doença é a principal consequência das mudanças climáticas em Santos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Como o calor do verão e as chuvas decorrentes da umidade alta se espalharam por todo o ano, a vigilância contra o Aedes aegypti também teve que ser estendida.
A atenção aos moradores com mais de 60 anos deve ser redobrada, já que eles são os mais suscetíveis a complicações provocadas pela dengue. Segundo a prefeitura, as quatro mortes associadas à doença registradas no ano passado foram de idosos com comorbidades.
De acordo com o secretário de Saúde Fábio Lopez, antes, casos de arboviroses e desidratação eram clássicos no fim e no início do ano, durante o verão. Nos meses mais frios, como maio, junho e julho, era a vez das doenças respiratórias. O padrão não existe mais. “Hoje, a gente não tem mais essa ligação tão direta com os meses, mas sim com a condição climática”, diz.
Esta reportagem foi produzida durante o 69º Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, patrocinado pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e pela Philip Morris Brasil. O curso teve ênfase em meio ambiente.
Fonte ==> Folha SP