Censo 2022 desmente tese de terreiros mais brancos – 14/07/2025 – Cotidiano

Censo 2022 desmente tese de terreiros mais brancos - 14/07/2025 - Cotidiano

Os terreiros estão ficando mais brancos?

Resposta curta: não. Vamos à mais longa agora.

Essa tese ganhou tração nos últimos anos, acompanhada de imagens de pessoas de pele clara no Dia de Iemanjá em Salvador, ou saudando algum orixá nas redes sociais.

Os dados do Censo 2022, contudo, não corroboram essa impressão. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a participação de brancos em religiões afro-brasileiras retraiu do recenseamento feito em 2010 ao mais atual, indo de 46,7% para 42,9% da população acima de 10 anos.

A maior parte, portanto, é negra, somando pretos (23,2%) e pardos (33,2%).

Isso num contexto em que as pessoas de 10 anos ou mais que se consideram brancas, na população geral, eram 48% em 2010, passando para 43,4% em 2022. Para a análise, foi usado o recorte de 10 anos ou mais para se alinhar com a mesma abordagem usada no recorte que o IBGE faz de religiões.

A divulgação desse último levantamento demográfico apresentou seis grupos religiosos: católico (56,7%), evangélico (26,9%), espírita (1,8%), tradições indígenas (0,1%) e umbanda/candomblé (1%). O resto é empacotado como “outras religiosidades” (4%), fora os “sem religião” (9,3%).

De todas essas, as afro-brasileiras tiveram o maior crescimento proporcional entre 2010 e 2022.

O número de adeptos triplicou, passando agora para 1,8 milhão de brasileiros.

O próprio IBGE faz o disclaimer de que, além de não discernir umbanda de candomblé, essa categoria abrange mais religiões de matriz africana —há outras de menor calibre estatístico, como o catimbó, baseado numa planta com propriedades psicodélicas utilizada há séculos por populações negras e indígenas e descrito pelo colunista da Folha Marcelo Leite em “A Ciência Encantada de Jurema”.

Ressalva feita, o Censo 2022 mostra que as religiões de raiz afro estão em 73,1% dos municípios do país, um salto em relação a 2010, quando foram citadas em 28,7% das cidades.

A fração de autodeclarados brancos encolheu em 16 capitais. A maior queda foi em Vitória, onde esse grupo, antes metade dos praticantes, caiu para 36%.

Fiéis brancos, por outro lado, dilataram sua participação em outras 11 capitais, com destaque para Recife (de 22% para 27%) e Salvador (8,5% a 10%). A proporção de brasileiros que se dizem pretos também cresceu nesses lugares; foram os pardos que perderam espaço.

No Rio Grande do Sul, estado com maior percentual de brancos no Brasil (78,4%), estão 41 das 50 cidades com mais adeptos. Em todas, brancos são a parcela racial mais numerosa nas religiões afro-brasileiras.

Esse valor é esperado, já que eles são a ampla maioria do povo gaúcho.

Uma métrica ajuda a compreender melhor o fenômeno local: só em nove desses municípios houve aumento da adesão branca. Uma das hipóteses é que, ainda que seja o estado mais branco, a fatia de pretos e sobretudo pardos vem alargando como um todo entre gaúchos, o que se reflete nos dados religiosos.

Para Carolina Rocha, doutora em sociologia e pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião), “os terreiros seguem sendo espaços negros por origem, fundamento e enfrentamento histórico”, isso a despeito da “narrativa do embranquecimento, que tem apelo porque dialoga com uma longa tradição brasileira de apagar a centralidade negra em territórios de resistência”.

A ideia de que essa crenças tenham virado modinha em círculos brancos “esvazia um fenômeno mais profundo”, diz Rocha, autora de “A Culpa É do Diabo: O que Li, Vivi e Senti nas Encruzilhadas do Racismo Religioso” e iamorô (uma sacerdotisa no candomblé).

O Censo mostra que adeptos da religiosidade de origem africana estão entre os mais escolarizados do país. “Isso ajuda a explicar por que há mais pessoas brancas se aproximando dessas tradições. São, historicamente, o grupo que mais acessa conhecimento sobre a história afro-brasileira com densidade e sem estereótipos.”

Há uma noção de que a presença branca valoriza ou elitiza o terreiro, diz Pai Rodney William, babalorixá e doutor em antropologia. “A velha ‘síndrome de princesa Isabel’ sugere nas entrelinhas que ela melhora tudo que é negro.”

Pandemia e redes sociais explicam em parte por que há mais gente se declarando candomblecista e umbandista, segundo William. “Nos anos 1990, havia uma série de canais de TV com programas que demonizavam sistematicamente as tradições de matriz africana.”

Até a internet se popularizar. “Conteúdos promovendo o candomblé e a umbanda viralizaram, canais no YouTube e perfis de Instagram alcançam milhões de pessoas e, obviamente, o acesso à informação levou muita gente a conhecer mais e melhor as religiões afro-brasileiras”, afirma.

O isolamento provocado pela Covid-19 fez das redes sociais “grandes espaços de interação”, e o povo do terreiro foi pegando a manha da linguagem digital, com rituais transmitidos online e perfis pop. O Macumbeiros Descontraídos é um deles.

O sociólogo Reginaldo Prandi, professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), lembra que cor ou raça, no Censo, são autodeclaratórias. “E o que aconteceu é que o Brasil inteiro passou a se declarar mais negro, e isso se deve às políticas públicas, às cotas, às pressões do movimento negro”.

A população parda com 10 anos ou mais no Brasil era de 42,5% em 2010, saltando para 44,9% em 2022. Já as pessoas de 10 anos ou mais que se consideram pretas eram 8% em 2010; esse valor foi para 10,7% em 2022.

O sociólogo francês Roger Bastide, no pioneiro “O Candomblé da Bahia”, já dizia que “os brancos estavam surgindo nessa religião”, aponta Prandi. Nenhuma novidade aí. Mas falar em branqueamento é “uma tese falsa”, até porque, “se um país se declara mais negro do que dez ou mais anos atrás, é claro que todos os seus grupos também estarão mais negros”.

Ele vê uma análise prejudicada por causa da junção de umbanda e candomblé na mesma categoria, e repara que, historicamente, a primeira tem mais brancos em seus espaços.

“O problema nunca foi a presença de pessoas brancas, mas a ausência de consciência sobre o lugar que elas ocupam”, diz Jonathan Pires, idealizador da Marcha para Exu e, como Prandi, de tez clara. “O que a gente precisa é garantir que pretos e pardos não sejam apagados dentro das suas próprias tradições. Quando a estética, a liderança e o discurso começam a seguir padrões brancos, algo está fora do lugar.”

Para Rocha, do Iser, “o próprio modelo de coleta do Censo é limitado”. A pergunta “qual sua religião ou culto?”, diz, “parte do pressuposto de uma única e estável identidade religiosa, quando a realidade brasileira é marcada por um maior hibridismo de crenças”.

“Há católicos que frequentam terreiros, evangélicos que tomam banho de ervas, umbandistas que também se dizem espíritas. Há ainda quem viva religiosidades não institucionalizadas ou fluidas e opta por se declarar como ‘sem religião’.”

Não que triplicar a fatia no bolo religioso seja indigno de nota, acrescenta ela. Aí entram fatores como a valorização da cultura negra, maior acesso à educação superior por jovens negros via Lei de Cotas e campanhas como “Quem É de Axé Diz que É”. Ela é.



Fonte ==> Folha SP

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