São Paulo
“O Havaí seja aqui”, entoava Caetano Veloso no clássico “Menino do Rio”. Cantado em verso e prosa, o arquipélago idílico onde tudo o que sonhares rima com as ondas dos mares cristalizou-se no pensamento de muitos como um destino de natureza exuberante e ambiente acolhedor, onde você é recebido com um “aloha” e um colar de hibiscos.
Nem tudo são flores, porém, na história desse território tropical com povos originários que foram dominados. Assim como no Brasil e em outros países que passaram por processos similares, boa parte da memória pré-colonial foi alvo de apagamento.
É parte dessa lacuna que “Chefe de Guerra” tenta preencher. A série, que estreia na sexta-feira (1º) na Apple TV+, volta ao final do século 18 para mostrar como era a vida por ali quando as ilhas eram reinos independentes (e viviam em guerra umas com as outras) e precisaram unir forças contra um inimigo em comum.
Na trama, o astro Jason Momoa interpreta Ka’iana, uma espécie de conselheiro real que tenta fazer essa mobilização. Para isso, sai de sua comunidade e tem contato com várias outras culturas —ele chegou a visitar até a China—, tornando-se uma espécie de embaixador involuntário.
O papel parece feito sob medida para o fortão que já interpretou o herói Aquaman e o bruto Khal Drogo de “Game of Thrones”. Nascido em Honolulu (capital do que hoje é o estado americano do Havaí), o ator usa seus dotes físicos e seu expertise em cenas de ação neste que é um de seus projetos mais pessoais até o momento —tanto que ele assina a cocriação, a produção executiva e até dirigiu um dos episódios.
“Acho que Ka’iana é o único personagem que eu poderia interpretar”, diz Momoa em entrevista ao F5. “Há tantas histórias havaianas lindas e eu até gostaria de contar outras, mas eu simplesmente não me sentia à vontade. Eu não me identificava ou simplesmente não parecia certo. Quando fui apresentado à história de Ka’iana, eu apenas pensei que seria uma ótima ideia.”
“É um havaiano que sai para ver o mundo e volta depois de ver tudo aquilo para ajudar a unir os reinos por causa do que está por vir e do que está acontecendo fora do mundo deles”, destaca. “Parece perfeito para repercutir todas essas outras histórias que queríamos contar, já que poderíamos incluir várias coisas que amamos, além de falar da história do nosso povo.”
O projeto foi desenvolvido em conjunto com o roteirista Thomas Pa’a Sibbett, também nascido no Havaí, com quem ele já havia colaborado em “Perigo na Montanha” (2018), “A Última Caçada” (2022) e “Aquaman 2: O Reino Perdido” (2023). Apresentar a narrativa sob a perspectiva dos nativos foi um dos pontos de motivação dos dois.
“Acho que o peso disso não veio até depois que construímos a história do ponto de vista criativo e soubemos o que íamos falar”, afirma Sibbett. “Agora, percebemos que precisávamos fazê-lo e que existe um impacto cultural —e que haverá uma resposta a isso.”
Algumas decisões da dupla foram ousadas, como o fato de a série ser quase toda falada em havaiano (idioma pouco falado, já que as línguas nativas foram proibidas pelos colonizadores durante muitos anos). Além disso, eles fizeram questão de contar com um elenco quase todo de origem polinésia, de onde os povos originários do arquipélago descendiam.
“Sendo realista, acho que essa escolha reflete os tempos atuais”, comenta Sibbett. “Isso reflete a expectativa do público: eles querem algo real, querem coisas que não pareçam falsas, o público ficou muito perspicaz. Então, para avançar com isso, especialmente como povos indígenas, não seremos nós a argumentar que não podemos usar a nossa própria língua. Queremos garantir que esteja lá. É uma representação nossa.”
Ele admite que isso só foi possível porque tanto Momoa quanto ele chegaram a um patamar na carreira em que podem produzir seus próprios programas —e convencer empresas como a Apple de que vai dar certo. “Se estivermos no topo e não pudermos impor isso, não vai acontecer”, avalia. “Tivemos a sorte de chegar a uma posição onde podemos tomar e influenciar decisões, e essa sempre foi uma delas. Queríamos fazer isso da forma mais culturalmente consciente possível e nos sentimos muito bem com o que conseguimos.”
Entre as surpresas do elenco está o estreante Kaina Makua, escolhido para interpretar o rei Kamehameha, o primeiro a governar o reino unificado do Havaí. Sem treinamento prévio em atuação, ele foi visto por Momoa quando estava na praia, treinando para um campeonato de canoa havaiana.
“Fui convidado para a casa dele naquela noite e ele já me disse ali que eu iria interpretar Kamehameha. Eu disse que ele estava delirando, mas aqui estamos agora”, relata o agora ator.
Como Kamehameha não era herdeiro direto do trono e não foi criado para governar, Makua diz que conseguiu usar parte de sua própria inexperiência e hesitação no papel. “Com certeza, tive que acessar essas mesmas emoções de dúvida”, conta. “Assim como ele, sou um cara que vai levantar qualquer peso que precisar para cumprir com as minhas responsabilidades, sou assim na vida.”
Fonte ==> Folha SP