Se os lucros do Comando Vermelho nos anos 1980 foram turbinados pelo tráfico de cocaína, hoje a facção diversifica suas atividades. Para além dos mercados bilionários de ouro, madeira e tabaco, o crime organizado também mantém uma renda estável com a exploração dos moradores nos territórios dominados.
A extorsão ocorre por meio de taxas de segurança, proteção para gatos de energia e o monopólio do comércio de produtos. Esse fenômeno estaria ocorrendo desde a primeira década dos anos 2000, junto com a expansão de milícias, o que inspirou a facção do tráfico de drogas.
É o que diz Roberto Uchôa, ex-policial federal e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
“Interessante notar também que a milícia copiou o modus operandi de traficantes e passou a permitir a venda de drogas”, diz. E a exploração dos moradores passou a permitir mais previsibilidade na comparação com o mercado de alto risco da droga.
“Traficantes começaram a aplicar essa ideia da milícia e tenho dito: o poder da facção não vem mais só da droga, vem do controle territorial.” A Operação Contenção, que deixou 121 mortos e é a mais letal da história do país, assim, não faz sentido, na avaliação do pesquisador.
“Deixou a organização com a principal fonte de poder, que é o controle territorial. Só vai poder comprar gás de quem ela deixa, vai ter que pagar taxa de gato de luz, pagar pela internet, pelo transporte alternativo, comprar cigarro contrabandeado de quem ela deixar”, diz Uchôa. “E só vai poder fazer campanha política quem ela deixa, isso é um capital gigantesco da organização.”
O Comando Vermelho, segundo o pesquisador, não tem uma estrutura tão verticalizada e centralizada quanto a do PCC (Primeiro Comando da Capital), mas cresceu por meio de um modelo similar a franquias. Os modos de fazer dinheiro, por isso, variam de acordo com cada liderança, que continua a ter obrigações com a facção, mas tem uma certa liberdade para atuar como quiser no território que controla.
O movimento de expansão da facção no Rio, por exemplo, que busca ampliar o controle de territórios sobre as milícias da zona oeste, mostra que as práticas de cobrança já estabelecidas em alguns locais, como Gardênia Azul, podem ser mantidas.
Essa renda estável tem ganhado cada vez mais espaço no caixa da facção. Não há dados objetivos sobre o peso da droga nessa receita, segundo Uchôa, mas leituras aproximadas. “Algumas afirmativas mais gerais apontam algo entre 30% e 40%. Ainda muito importante, mas não a única fonte. Tanto que o contrabando de cigarro hoje é um mercado enorme.”
Outro aspecto destacado pelo pesquisador é o tamanho do território. “Numa comunidade menor, o mercado de drogas terá um percentual maior no total porque é principalmente para um público de fora da comunidade. Mas vamos pensar na Rocinha. Com certeza a renda obtida internamente será grande.”
De acordo com Uchôa, as cobranças funcionam como se o crime fosse um serviço. “Alguém decide abrir um comércio na favela e não vai pagar IPTU ou luz. Mas precisa pagar para o crime, que não vai deixar a Light [concessionária] ir lá cortar.”
A adaptação para cobrar por proteção e monopolizar o comércio nos territórios deixou as facções mais resilientes, diz Uchôa, o que reduz o impacto de grandes apreensões de drogas ou armas. Já as lacunas nas fileiras após prisões e mortes são rapidamente contornadas com a cooptação de jovens sem perspectivas.
Apesar do alto número de mortes, a operação mostrou mais uma vez que o Estado tem condições de entrar nos territórios. “Entrou há 15 anos, deixou todo mundo fugir, entrou agora. Mas isso exige cada vez mais investimento e morte, porque a organização criminosa vai se preparando para o confronto.”
Para ele, no entanto, o crime organizado só floresce com anuência ou omissão de agentes públicos, o que também demanda o enfrentamento à corrupção. “Desde nomeação política de comando de batalhão e de delegacia até negociação de campanha. Isso tudo é capital e é negociado sempre.”
O apoio da população às operações, como detectado por pesquisa Datafolha divulgada no fim de semana, é um sinal de carência. “Você precisa dar alguma perspectiva, oferecer serviços. Essa população vê o Estado duas vezes por ano para trocar tiro. Elas querem liberdade, mas querem que o Estado fique, não que vá embora.”
Para o pesquisador, é preciso enfrentar o domínio territorial e oferecer ações sociais, política que precisa atravessar mandatos e esferas de governo, além de acordos. “Mas tem outra. Muita gente lucra com mercado ilegal e não vai querer que fechem essas torneiras.”
Por último, Uchôa afirma que a tentativa de classificar organizações do narcotráfico como terroristas pode gerar reveses entre defensores da ideia. “Será que estão cientes de que qualquer pessoa com algum envolvimento com as facções pode ser sancionada e presa pelo governo americano no mundo inteiro? Vai faltar prisão, estão defendendo algo que pode pegar muita gente dentro da política.” Os efeitos também chegariam, diz ele, ao Judiciário e ao Legislativo fluminenses.
Fonte ==> Folha SP
