Como o Stitch, alien da Disney, virou obsessão infantil – 01/05/2025 – Ilustrada

Uma criança de costas, vestindo um vestido preto com estampas florais, está em frente a uma vitrine de loja. Ela está interagindo com bonecos de pelúcia grandes, que são personagens azuis e rosa, semelhantes a um alienígena. Ao fundo, há uma variedade de produtos eletrônicos expostos, incluindo caixas de som e outros itens. A vitrine é iluminada e colorida, atraindo a atenção da criança.

Quinta-feira de céu azul na rua 25 de março, centro comercial mais popular de São Paulo. A cor cobria também vitrines e barracas. Em frente a uma delas, um rapaz analisava quais peças de roupa levaria para a filha de dois anos. Disse que ela e as colegas estavam fissuradas naquele alienígena azulado. Além de “mamãe” e “papai”, a menina havia acabado de aprender a pronunciar um nome: “Stitch”.

Embora tenha sido criado há mais de 20 anos, o personagem da Disney nunca foi tão popular. “Lilo e Stitch”, a animação de 2002, ganha no mês que vem um novo filme, agora em live-action, com atores. É a principal aposta da Disney para os cinemas este ano, após a empresa injetar dinheiro numa estratégia feroz para espalhar o monstrengo azul pelas mais diferentes prateleiras.

Não estamos falando só de brinquedos e bichos de pelúcia. No último ano, Stitch abocanhou todas as fatias do mercado, e hoje estampa pipoqueiras, pastas de dente, hidratantes corporais, pratos de porcelana e até embalagens de panqueca. As vendas de produtos licenciados do personagem cresceram 247% no ano passado.

Mas essa histeria pelo personagem gera uma preocupação sobre consumismo infantil. Há dez anos se tornou proibido, no Brasil, fazer anúncios de produtos que apelem ao desejo das crianças. E, ainda que obedeça à legislação, a Disney vem lotando de Stitches as lojas e as redes sociais, criando assim uma ânsia desenfreada por ele.

“A Disney não pode comprar um espaço na TV e fazer anúncios para crianças, mas nada impede que o público fale dos seus produtos na internet. A lei de publicidade infantil, nesse sentido, é muito driblável, e os canais digitais acabam servindo de estratégia de marketing”, afirma Koca Machado, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM, e sócia da agência Grupo Sal.

E o desejo não parte só das crianças. Stitch se tornou uma marca poderosa logo que surgiu, no começo dos anos 2000, quando virou uma das principais franquias da Disney —foram lançados mais três filmes e uma série animada focados nele, exibidos à exaustão no canal de TV do estúdio.

Mas a obsessão estourou mesmo na Ásia, há cinco anos. Foi lá que a Disney identificou uma febre por criaturas animalescas de características antropomórficas, geralmente fofas e peludas, fenômeno hoje conhecido como “cultura furry”. “Começamos a alimentar essa onda”, diz Mara Ronchi, líder de produtos de consumo no braço nacional da Disney. “Investimos no varejo, fomos atrás de parceiros, trouxemos o Stitch para feiras de cultura pop, e montamos atrações em shoppings.”

A vendedora Priscila Moraes, de 48 anos, foi até a rua 25 de Março à caça de capinhas de celular do Stitch. Queria comprar um lote para revender. “Gosto dele porque me ajuda a escapar da nossa realidade caótica. Lembra infantilidade, inocência.”

O que encanta Moraes, e uma porção de adultos fiéis ao Stitch, é a subversão que ele faz no conceito de família. Na trama do filme, o alienígena sapeca escapa de uma prisão intergaláctica e desembarca no Havaí, onde conhece a garota Lilo, que perdeu os pais e não tem amigos. Quando se conhecem, extraterrestre e humana encontram porto seguro um no outro, e viram companheiros.

“Stitch é torto, nascido para destruir, mas encontra amor e se transforma. Hoje em dia, na cultura pop, ninguém é mais só bondoso, e por isso ele se conecta tanto com o século 21”, diz Machado, a professora.

Saturar o mercado com Stitch é uma forma de preparar o terreno para o novo filme, que segundo projeções de sites especializados, deve render US$ 100 milhões no final de semana de estreia, e se tornar uma das maiores bilheterias do ano. Até o lançamento em 22 de maio, novos produtos inspirados no live-action devem chegar às lojas.

“A chegada desse filme mostra para os fãs mais antigos que o personagem está se tornando real ao mesmo tempo em que eles enfrentam a realidade da vida adulta”, diz Pedro Curi, especialista em cultura de fã da ESPM. “Stitch se tornou companheiro de vida de quem era criança no começo dos anos 2000. São pessoas que olham para os bonecos dele e têm a memória afetiva estimulada. Assim, compram também o copo e todos os outros produtos.”

Com o Mickey, símbolo máximo da empresa, em domínio público desde o ano passado, se torna prioridade da Disney emplacar novos mascotes, afirma o professor. O rato e o Stitch, aliás, até compartilham um fato curioso —grande parte dos seus fãs nunca sequer viram os filmes.

É por isso, diz Koca Machado, a especialista em marketing, que o alienígena azul representa uma novidade na cronologia comum entre filmes e produtos: sucesso no cinema, depois nas prateleiras. Apesar de o Stitch ter surgido das telas, sua obsessão no varejo fez ele criar vida própria para invadir o imaginário popular sem estar necessariamente ligado ao filme. “Lilo e Stitch” é, afinal, uma animação feita em 2D, técnica considerada datada pelas crianças e até abolida pela Disney.

Este é o caso também de outras fissuras recentes, como o Sonic, que se descolou dos seus jogos, lançados décadas atrás, para virar ícone infantil —ele ganhou três filmes nos últimos cinco anos. Algo parecido aconteceu com “Minecraft”, que virou filme no começo de abril, e levou crianças à euforia —muitas nunca nem jogaram o game, febre nos anos 2010.

Quem aproveitou o furor para fazer negócio foi o alagoense Nathan Silva. Aos 26 anos, ele comprou uma fantasia de Stitch para trabalhar como animador de festas infantis e artista de rua em São Paulo.

No primeiro domingo de abril, tentou a sorte na avenida Paulista. Suando debaixo da fantasia peluda, Silva passeava pela rua oferecendo fotos por qualquer valor. Antes ele fazia o mesmo, mas vestido de Mickey. “Comprei a do Stitch porque estava na moda. Tiro uns R$ 50 por dia”, ele conta.

Feita de espuma e tecido, a fantasia custou R$ 949 e não é licenciada —ou seja, não foi fabricada pela Disney, mas por um produtor terceirizado, que não paga pelos direitos autorais.

Essa prática incomoda a Disney. “Fazer produtos de todas as faixas de preço é o que ajuda contra a pirataria”, diz Ronchi, a executiva do estúdio. Na entrevista, ela vestia uma camiseta do Torra, loja popular onde peças de roupa do Stitch são vendidas a partir de R$ 20.

Mas em outros espaços os produtos chegam a custar centenas de reais. Um dos mais caros é um brinquedo mecatrônico que reproduz falas do filme, balança a cabeça e pisca os olhos —em lojas de São Paulo, o produto custa R$ 1.329,90.

Para os pais que não podem pagar, seja por este ou pelos produtos mais em conta, o jeito é ensinar às crianças, em casa e na escola, os malefícios do hiperconsumo, diz Maria Mello, coordenadora do Criança e Consumo, plataforma que advoga contra propaganda infantil. “Isso é difícil, parte de quebrar tradições, consumismo está enraizado em muitas famílias.”

Precisa haver também, ela afirma, uma regulação das redes sociais, onde o incentivo à compra é enérgico, livre e inconsequente. Assim como o próprio Stitch.



Fonte ==> Folha SP

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