Dezenas de pessoas, munidas de boné, protetor solar e blusas com a frase “Energia limpa sim, mas não assim” se reuniram no pé de uma montanha em Uibaí (BA), em março, para protestar contra uma empresa de energia solar.
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Era o 3º Grito do Boqueirão. O primeiro foi em 2014 e o segundo, em 2018, quando os manifestantes alertaram sobre questões como caça e incêndios na região.
Dessa vez, a manifestação visava o possível desmatamento de 1.554 hectares de floresta de caatinga nativa no processo de instalação de um complexo de energia solar. A intenção foi revelada em um licenciamento prévio que o Inema (órgão ambiental do governo da Bahia) cedeu à empresa de energia norueguesa Statkraft em maio de 2024.
No documento, válido por três anos, o órgão afirma que a área total do empreendimento poderia conter 22 usinas fotovoltaicas, totalizando 1,3 milhão de painéis solares espalhados entre as cidades de Uibaí e Ibipeba, na Chapada Diamantina.
“Nós ficamos assombrados por isso”, disse Edimário Oliveira, ambientalista e presidente da ONG Umbu, que atua na região.
Durante o Grito do Boqueirão, ele conduziu os manifestantes por uma trilha de 3 km até uma área reflorestada pela ONG. Sua intenção, disse, era mostrar a biodiversidade da floresta de caatinga enquanto a empresa começava a desmatar.
Para a primeira fase do projeto, o Inema cedeu um licenciamento de instalação de 454 hectares, ou seja, o desmatamento de uma área de quase três vezes o tamanho do Parque Ibirapuera, em São Paulo.
Antes de iniciar um empreendimento, empresas precisam obter licença prévia, licença de instalação e licença de operação. A Statkraft tem licença prévia para desmatar 1.554 hectares, mas tirou licença de instalação para 454 hectares —para as usinas de número 3 a 7.
Edimário diz temer que, dentro do prazo de três anos, a empresa peça licenças de instalação para mais usinas dentro da licença prévia obtida. À Folha a Statkraft afirmou que “essa área é estritamente relacionada aos estudos técnicos ambientais e de viabilidade preliminares” e que não planeja pedir uma segunda licença de instalação no momento.
Desertificação na caatinga
“Nós plantamos nessa área 8.000 árvores nativas ao longo do tempo”, dizia o ambientalista enquanto subia a trilha. “Já fizemos muitas campanhas de semeadura e plantio de mudas. Aí, de repente, nos deparamos com a permissão do governo do estado para supressão dessa floresta para colocar energia solar.”
O reflorestamento de áreas degradadas é uma forma de mitigar a seca em Uibaí, que fica na microrregião de Irecê, no centro da Bahia e na Chapada Diamantina setentrional. Com vegetação de caatinga e clima semiárido, a área é considerada suscetível à desertificação, conforme a Política Nacional de Combate à Desertificação.
Neste ano, por exemplo, os agricultores da região perderam toda a safra de milho devido à estiagem que durou de janeiro a abril.
“Quando falo de desmatamento, falo também de uma perturbação profunda no ciclo hidrológico. Quando a gente corta a árvore, não tem mais a evapotranspiração dela, e não tem mais nuvem. Sem nuvem, não vai ter chuva, e o território se aquece e se resseca”, diz Clarice Ferraz, pesquisadora associada do Grupo de Economia de Energia da UFRJ.
Foram desmatados 12,8 mil hectares de vegetação nativa em todo o país, por empreendimentos de energia eólica e solar, nos últimos cinco anos. Mais de 90% da supressão se concentra no bioma caatinga.
Em 2024, Ibipeba e Uibaí ficaram entre as dez cidades do país (9º e 10º lugares) com maior área desmatada para projetos de energia renovável, segundo levantamento do MapBiomas, rede colaborativa que monitora o uso da terra no Brasil.
Comunidades tradicionais impactadas
A Statkraft tem o Complexo Eólico Ventos de Santa Eugênia entre Uibaí e Ibipeba, na mesma área que pretende construir o Complexo Santa Eugênia Solar. O parque eólico começou a ser construído em 2021 e passou a operar em 2024.
O líder da ONG começou a protestar assim que soube da tentativa de novo licenciamento em 2023. Depois da primeira licença de instalação, conseguiu ajuizar uma ação civil no Ministério Público da Bahia, que resultou em uma liminar suspendendo o desmatamento em novembro de 2024.
A MP-BA pontuou que as licenças foram concedidas mesmo não existindo consulta prévia às comunidades impactadas (quilombolas e comunidade de fecho de pasto), que a empresa não apresentou estudo e relatório de impacto ambiental, além de não considerar a existência de duas espécies de vegetação e nove espécies de animais ameaçadas de extinção.
Em dezembro, uma desembargadora suspendeu a liminar por 90 dias, tempo dado para que a empresa apresentasse os documentos que faltavam. Nesse período, os 454 hectares foram desmatados.
O povoado de Adelmiro de Oliveira, 43, fica no pé da serra ocupada pela Statkraft em Uibaí. Segundo ele, a degradação tem causado o ressecamento de nascentes de rios, e as estruturas do empreendimento afugentam os animais. Sem local para pasto, o espaço para a agricultura também diminuiu.
“Eu questionei sobre o reflorestamento, que eles se dizem obrigados a fazer. Eles disseram: ‘A gente é obrigado a reflorestar, mas não necessariamente aqui’. Mas isso é injustiça, nós que estamos aqui sofrendo os impactos e outras regiões é que vão ser beneficiadas”, diz. “Fomos tratados como indigentes”.
Os quilombolas da comunidade de Serra Grande, em Ibipeba, também afirmam que foram prejudicados pela empresa desde o parque eólico. Além de perder lugar para o gado, dizem que já faz dois anos que o riacho da região está seco.
“Esse ano foi um ano fraco de chuva, mas o ano passado choveu bastante e as nascentes não apareceram”, diz Gildásio Nascimento, líder da associação quilombola.
O coletivo Umbu, os quilombolas e a comunidade de fundo e fecho de pasto ofereceram uma alternativa para a empresa instalar o parque solar sem desmatamento, mas não foi aceita.
“Aqui tem comunidades agrícolas, que são roças antigas já desmatadas e hoje pouco produtivas. Se a empresa arrendasse para fazer ali, além de evitar o desmatamento, estaria contribuindo com a agricultura familiar e injetando recursos na economia”, diz Edimário, que afirma apoiar empreendimentos de energia renovável, desde que feitos sem prejudicar o meio ambiente e as comunidades.
A Statkraft afirma que o empreendimento está situado em uma área totalmente regularizada, com a Reserva Legal devidamente cadastrada e em conformidade com as exigências ambientais. Além disso, diz que o projeto desenvolveu mais de 15 programas ambientais e medidas que garantem que nenhuma espécie local seja extinta.
Segundo a empresa, a localização também precisa respeitar as normas regulatórias do setor elétrico e eles têm um projeto híbrido, quando duas fontes de geração de energia (eólica e solar) estão na mesma localidade e se conectam na mesma subestação.
Série mostra impacto da transição energética em comunidades da Chapada Diamantina, na Bahia
A transição para uma matriz energética renovável, importante para desacelerar a crise climática, afeta a chapada Diamantina, na Bahia, colocando seus moradores no centro de conflitos devido ao desmatamento, pressão em comunidades tradicionais, abertura de estradas e aumento da mineração.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.
Fonte ==> Folha SP