A realização de diversas obras em Belém para a COP30, que acontece em novembro, tem revelado verdadeiros tesouros arqueológicos. Entre eles, uma embarcação do século 19, galerias subterrâneas, muros de arrimo, cerâmicas indígenas e de populações negras, louças e garrafas europeias e moedas.
Augusto Miranda, arqueólogo da superintendência do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no Pará, conta que era esperado encontrar sítios e vestígios arqueológicos em meio a tantas atividades de revolvimento de solo na cidade, principalmente em áreas centrais e próximas ao rio.
“Esses achados são importantes porque recontam uma história que, muitas vezes, está esquecida ou nem foi contada. Normalmente, a gente supervaloriza a materialidade do colonizador em detrimento das populações originárias ou trazidas à força da África.”
A descoberta mais vultosa aconteceu no início das escavações, em agosto passado: uma embarcação encontrada sob a calçada e o asfalto, próxima ao antigo porto. O achado aconteceu durante a construção do parque linear da avenida Visconde de Souza Franco, a Doca, no bairro do Reduto.
“Ela é do século 19, feita de ferro, possivelmente movida a vapor e de fabricação estadunidense, e está em um contexto em que a gente não tem essa materialidade na Amazônia, a não ser em relatos”, afirma Miranda, que também é historiador.
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A parte encontrada corresponde à proa e a cerca de metade da embarcação, totalizando 20 metros de comprimento, 8 m de largura (na parte mais ampla), 2,70 m de altura e cerca de 22 toneladas.
Na área onde hoje se encontra a avenida Doca, com o seu famoso canal, ficava o Igarapé das Almas, que era navegável por, pelo menos, cerca de 500 metros, até o antigo Mercado do Reduto, onde atualmente fica o ginásio Altino Pimenta. Por lá chegavam pequenos barcos de madeira, com produtos para venda no local.
“Mas a embarcação encontrada está fora desse contexto, pois, pelas suas dimensões, não era navegável no Igarapé, mas em águas profundas, por isso estava mais próxima à baía. E era feita de ferro, possivelmente para transporte de carga. E um dado importante: ela é uma embarcação abandonada, não afundada, e a cidade cresceu em cima dela, com aterros e as ruas.”
A embarcação está sendo restaurada em uma tenda montada a poucos metros de onde ela foi descoberta, e será exposta ao ar livre, no parque Porto Futuro 1, segundo o Iphan.
“Neste momento, estamos finalizando a limpeza da embarcação com jato seco, para preservar ao máximo o material, e depois aplicaremos um consolidante [espécie de verniz], para que ela possa ficar protegida das intempéries”, explica a arquiteta, conservadora e restauradora Tainá Arruda, que comanda a equipe responsável pelo restauro.
Para Miranda, a exposição do barco é importante “para a população ver e compreender Belém como ela é”. “É uma cidade na beira do rio, que tinha vários rios dentro dela, que estava em um contexto em que respirava esse rio. Existe um carimbó clássico chamado ‘Esse Rio É Minha Rua’ [de Paulo André e Ruy Barata], e é exatamente essa a percepção da cidade neste contexto.”
Uma das peças favoritas de Tainá é uma moeda que foi encontrada presa na estrutura da proa da embarcação. “Ficamos muito felizes de encontrá-la porque, até então, as peças achadas eram realmente de embarcação, como quilhas e rebites”, conta.
A moeda é de 20 réis, de 1781, e traz a inscrição ‘MARIA I E PETRUS III DGPE BRASIL REGES’.” Segundo o site da Sociedade Numismática Brasileira, a frase, que aparece abreviada em latim, significa “Maria 1ª e D. Pedro 3º, por graça de Deus, regentes de Portugal e do Brasil”, referente ao reinado de Maria 1ª, casada com Dom Pedro 3º.
Outra descoberta importante foram galerias subterrâneas, na obra de implantação do sistema de coleta e tratamento de esgoto nas imediações do Mercado Ver-o-Peso, um dos principais cartões-postais de Belém, às margens da baía do Guajará.
“São estruturas em tijoleira, em forma de arco, que foram construídas, principalmente, para absorver a alta da maré. Elas se encontram por debaixo das ruas da frente da cidade, no centro histórico”, diz o historiador Kelton Mendes, sócio-proprietário da empresa Amazônia Arqueologia, que realiza o acompanhamento de várias obras da COP30.
As galerias datam dos séculos 18 e 19 e a maior parte delas têm cerca de 60 cm de altura por 60 cm largura, mas algumas podem chegar a 1,90 m de altura por 1 m de largura.
Segundo Augusto Miranda, do Iphan, esses espaços podem ter sido usadas até para a passagem de pessoas. “Para fugas políticas, por exemplo. Em 1835, Belém passa pela Cabanagem [revolta popular na província do Grão-Pará de 1835 a 1840]. A cidade está tomada naquela confluência, com conflitos armados”, explica.
Na obra do Ver-o-Peso, foi descoberto também um muro de arrimo, tipo de estrutura já encontrada em outras obras nas proximidades. “Ele é datado do século 18. A frente da cidade é um local onde se construíam essas estruturas de contenção da maré, feitas de pedra e cal,” explica Mendes, que é mestre em arqueologia pela UFPA (Universidade Federal do Pará).
Após a descoberta dessas estruturas, o procedimento é registrá-las, já que não podem ser retiradas dos seus locais originais. “Elas permanecem onde foram encontradas e são documentadas com fotografias e georreferenciamento”, explica Miranda.
Cerâmicas e garrafas
Uma peça arqueológica destacada por Mendes é um pote cerâmico encontrado na obra da Doca. “Ele é muito interessante porque foi feito, provavelmente, por negros livres, a população mais pobre da cidade, no período entre o final do Império e o início da República”, conta.
“Em acervos, encontramos fotografias que mostram uma grande população que vendia esse tipo de pote”, diz o historiador.
As cerâmicas indígenas achadas, na forma de fragmentos, ainda estão em fase de limpeza, mas Mendes adianta que elas têm, no mínimo, 500 anos.
“De modo geral, elas faziam parte dos afazeres do dia a dia das populações antigas. Serviam para cozinhar, servir, assar e armazenar alimentos e até para enterrar seus mortos. Eram pintadas e entalhadas, com desenhos e padrões geométricos variados.”
O historiador destaca ainda uma mão de pilão de madeira, do final do século 19, e garrafas de procedência europeia. Uma delas traz a inscrição Wynand Fockink, uma destilaria holandesa fundada em 1679 em Amsterdã. Há ainda fragmentos de grés, tipo de cerâmica cozida em alta temperatura, e de louças europeias.
Além do Ver-o-Peso e da Doca, artefatos do mesmo tipo foram encontrados na obra do parque linear da avenida Almirante Tamandaré, que também margeia um canal. “Basicamente é o mesmo padrão de ocupação. Aquela região era a área do lago do Piri, que foi aterrado no final do século 19 para espraiar a Cidade Velha”, afirma Mendes.
Esses artefatos serão salvaguardados pelo Museu do Estado do Pará.
Porto Futuro 2
Na obra do Porto Futuro 2, um complexo que reunirá diversos equipamentos em armazéns restaurados no antigo porto de Belém, também foram encontrados diversos artefatos.
“Na área foi descoberta parte de uma embarcação, provavelmente do mesmo tamanho daquela encontrada na Doca. Foram achados também materiais ligados à área portuária, como antigas roldanas, rodas de guindaste e molinetes”, conta Miranda.
Ele afirma que parte desse material irá para a Fundação Casa da Cultura de Marabá, no sudeste do Pará, e o restante deve ficar exposto no próprio complexo.
O Porto Futuro 2, uma das principais obras para a COP30 na cidade, reunirá o Museu das Amazônias, o Centro Gastronômico, o Parque de Bioeconomia e Inovação da Amazônia e a Caixa Cultural, a primeira da região Norte. O local, com previsão de inauguração em outubro, deve receber atividades paralelas ao evento da ONU.
Fonte ==> Folha SP