Quando me perguntam qual é o maior tabu de todos os tabus da morte, eu costumo responder suicídio. Mas existe um silêncio ainda pior, inclusive da gente que fala tanto em morrer, sobre algo quase indizível: o adoecer e o morrer das crianças.
Pode parecer paradoxal, mas agora que sou mãe eu me sinto um pouco mais preparada para falar sobre o assunto. Como já escrevi, “ter um filho redimensiona tudo, inclusive a aceitação da morte. Talvez seja o grande momento de virada da ideia de que quem morre é o outro. O outro, agora, não pode mais morrer. O outro, agora, é parte de mim. Mas a morte continua a acontecer. E, por mais que o evento morte, com separação e fim, seja doloroso, há coisa pior”.
A morte da minha filha, hoje com quatro anos, é provavelmente o que de pior poderia acontecer na minha vida. Eu não consigo nem acessar o que representaria uma dor desse tamanho. Mas, para ela, eu consigo pensar em uma dúzia de coisas piores. Mais penosas. Muito mais sofridas. Em sofrimentos físicos e dores dilacerantes que, muitas vezes, atravessam, desde muito cedo, milhares de crianças.
Quando visitei um hospice na Alemanha, em 2016, escrevi que um médico e escritor já falecido chamado Sherwin Nuland falava sobre a dignidade da morte como a dignidade da vida vivida. E que eu gostava da ideia porque me orgulhava da minha vida vivida. Mas questionei: e para uma criança de quatro, cinco anos? Como dignificar a vida dela tão cedo?
Hoje, como mãe, penso muito em como as crianças com doenças graves estão vivendo. Nas dores diárias de picadinhas não inofensivas, nas alegrias momentâneas que, muitas vezes, só existem porque equipes médicas se importam.
Dignidade da vida vivida é dignidade de cada momento.
A médica pediatra intensivista e especialista em cuidados paliativos pediátricos Cinara Carneiro explica que crianças e adolescentes podem receber indicação de cuidados paliativos por uma grande variedade de diagnósticos.
“Na maioria dessas situações, são crianças em situações e quadros clínicos que exigem internação em unidades de terapia intensiva [UTIs] logo no início da vida, com procedimentos intervencionistas sem intencionalidade de cura, mas que têm o objetivo de possibilitar a assistência em ambientes de menor complexidade ou em domicílio.”
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Na maior parte dos casos, enfrenta-se a dependência de tecnologias, a perda de funcionalidade e a brevidade da vida. São crianças que não apenas não serão curadas de doenças; elas dificilmente chegarão à adolescência e raramente terão maior autonomia.
“Quando nossos pacientes chegam à UCP [Unidade de Internação em Cuidados Prolongados, regulamentada pela portaria 2.809/2012], temos diversas camadas a serem cuidadas. Essas famílias estão saindo da realidade de unidades intensivas em que, apesar de todas as dificuldades, o cuidado era prestado pelas equipes de saúde. Agora, os pais estão, muitas vezes, entrando em contato físico pela primeira vez com seus filhos. Tudo que parece simples, como banhos e trocas de fraldas, podem ser complexos ali. São crianças com dispositivos como traqueostomia, gastrostomia, conectadas a ventilador mecânico.”
A criança e o adolescente estão no centro do cuidado das equipes, mas suas famílias também são assistidas. A médica explica que, “na busca pela individualização do cuidado, muitas cuidadoras permanecem em ambiente hospitalar por longos períodos com suas crianças. Diante de constantes notícias difíceis, da imprevisibilidade, da fragilidade da rede de apoio, elas permanecem ‘internadas’ por meses e até anos, aguardando a estabilidade clínica ou a resolução de pendências sociais. Muitas vezes, a morte se impõe antes de as crianças terem condição de alta”.
Durante esse período, a vida possível precisa ser valorizada na maior intensidade que os recursos humanos e tecnológicos puderem permitir. Ela é urgente. O que de melhor essas pessoas conseguirem absorver de suas existências é urgente.
Atividades cotidianas nas vidas de outras famílias são os milagres concretos que Cinara presencia todos os dias. “Todo indivíduo merece a construção de uma biografia. São incentivadas as manifestações de espiritualidade com batizados, apresentações ou outras manifestações que façam sentido para a família e a criança; permite-se a visita no ambiente hospitalar de pessoas de todas as idades, para que os irmãos se façam presentes; celebramos datas festivas. A dureza do ambiente hospitalar, a distância da certeza do dia de ir para casa e a possível proximidade da finitude se misturam ao desejo de viver pequenas conquistas no hoje. A vida pulsa em um dia fora do ventilador, na tolerância de estímulo oral com a fonoaudióloga, no primeiro contato com a autoimagem no espelho, um primeiro passeio fora do leito, um banho de sol no jardim e até o retorno de alguma autonomia.”
Muito da força que principalmente as mulheres encontram para continuar desempenhando a difícil missão de cuidar vem do amparo do coletivo que se forma em torno dos lutos comuns, que “costura histórias e desenha algo inesperado”, segundo a médica. Mesmo quando seus filhos morrem, muitas delas seguem como suporte de outras, porque apenas passando pela mesma coisa é possível compreender a intensidade do que se vive ali. “Como a carta que recebi de uma aluna diz, encaramos brevidade e infinitude em atos diários e sentimos a presença intensa de momentos que muitos viverão uma vida inteira sem perceber.”
Fonte ==> Folha SP