‘Déficit de natureza’ prejudica saúde de crianças – 27/06/2025 – Ambiente

Uma criança está andando de bicicleta em uma rua urbana. O menino sorri enquanto pedala. Ao fundo, há um furgão branco estacionado e algumas pessoas caminhando. O cenário é de uma área com casas e comércio.

Aos sete anos, Nicolas Albino lista animais e insetos, mas só os conhece graças a uma visita ao zoológico. Brincadeiras no parque ou na praia não estão entre as suas preferidas. “Gosto de bicicleta, basquete e videogame. Não gosto da grama nem da areia porque pinica muito o pé”, afirma.

A mãe, Thalita Albino, 27, nasceu e cresceu no bairro Jardim Santa Cruz, zona norte de São Paulo, onde hoje cria o filho. Ela lembra das brincadeiras na rua e no campo de futebol do bairro, que, na sua infância, ainda tinha grama.

Desde então, a região mudou bastante, conta Thalita. Ela tem medo de deixar o filho brincar sozinho fora de casa. “Deixo ele andar de bike só na rua de casa, em frente ao mercado.”

Crianças que passam cada vez menos tempo ao ar livre podem sofrer impactos na saúde física e mental, segundo especialistas. São consequências do “transtorno de déficit de natureza”.

O termo, de autoria do jornalista norte-americano Richard Louv, chama a atenção para problemas como atraso no desenvolvimento motor, miopia, obesidade e distúrbios psicológicos e comportamentais.

Cofundador da organização Children & Nature Network e autor de “A Última Criança na Natureza”, Louv mostra que brincar ao ar livre melhora a imunidade, a memória, o sono, a capacidade de aprendizado, a sociabilidade e o bem-estar.

Nas grandes cidades, o uso excessivo de telas e o medo da violência forçam as crianças a permanecer em locais fechados, muitas vezes mal ventilados. “O calor excessivo desencoraja brincadeiras ao ar livre, especialmente em bairros menos favorecidos e com menos árvores”, disse Louv em entrevista à Folha.

Isso pode resultar em exposição a mofo, poluentes e umidade — combinação típica da chamada “síndrome do prédio doente”, segundo Vera Rullo, da Sociedade de Pediatria de São Paulo.

Esse ambiente favorece doenças respiratórias, como asma e alergias. O cenário se agrava com as mudanças climáticas. Com menos chuvas e mais poluentes no ar, a irritação nas vias respiratórias aumenta e a imunidade enfraquece”, afirma.

O calor extremo também afeta diretamente as crianças, que transpiram menos que os adultos e têm mais dificuldade de regular a temperatura corporal. Casos de desidratação, convulsões e até morte podem ocorrer durante ondas de calor intenso.

Manuela Sapia, 4, vive cercada por verde em Itupeva (interior de SP), onde mora com os pais perto de uma área de preservação ambiental. Ela vê tucanos e macacos da janela do quarto. No quintal, escala árvores, brinca com a terra e observa insetos. “Olha o grilo”, diz, enquanto mostra o inseto que encontrou.

“Ela nunca teve alergia, mesmo com o histórico de rinite do pai. Depois que nos mudamos para cá, até ele notou melhora”, conta a mãe, Flávia Sapia, que trocou a capital paulista pelo interior durante a gravidez. Criada perto de uma represa, ela quis que a filha crescesse com a mesma liberdade.

“Além dos benefícios físicos, o contato com o verde ajuda na prevenção de transtornos como ansiedade, depressão e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade”, segundo o psicólogo Marco Aurélio Carvalho, diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia.

Um estudo do Instituto de Saúde Global de Barcelona de 2019 mostrou que pessoas sem contato com a natureza na infância podem apresentar piora na saúde mental, mesmo quando têm acesso a áreas verdes na vida adulta. A pesquisa analisou dados de 3.585 adultos entre 18 e 75 anos em quatro cidades europeias.

“A gente fica mais tranquila quando está em lugares com muitas árvores do que com vários prédios”, diz Viola Vesch, de 10 anos. “Quando vou para o sítio, não quero ir embora.”

Para Maria Isabel de Barros, engenheira florestal e especialista em infância e natureza do Instituto Alana, as crianças das grandes cidades perderam o costume de estar ao ar livre, como acontecia há 30 anos.

“Antigamente elas tinham liberdade para subir na árvore ou fazer uma brincadeira um pouquinho mais arriscada. Hoje, as famílias estão cada vez mais preocupadas com que as crianças se machuquem, se sujem, ou sejam picadas por algum inseto”, afirma.

Além disso, falta tempo das famílias que trabalham fora. “Prefiro brincar no parque do que em casa, mas nem sempre dá porque meus pais trabalham”, diz Morena Araujo, de sete anos.

Uma pesquisa do Instituto Alana e do MapBiomas mostrou que 37,4% das escolas de educação infantil e ensino fundamental das capitais brasileiras não têm áreas verdes. O estudo avaliou 20.635 instituições públicas e privadas.

Foram analisadas imagens de satélite que identificaram áreas de, no mínimo, 25 m² de vegetação.

A situação nas regiões das favelas é ainda mais crítica: 52,4% das escolas nas proximidades não contam com áreas verdes.

No ranking que avalia as capitais, Salvador teve o pior resultado, com 87% de escolas sem áreas verdes. São Paulo aparece em 10º lugar, com 39% das escolas da capital paulista sem área verde, um total de 1.849 unidades, atingindo mais de 374 mil alunos.

Além disso, uma em cada cinco escolas de todo país não tem praças ou parques em um raio de 500 metros.

Em nota, o governo de São Paulo disse que irá criar 33 escolas com diretrizes sustentáveis e praças arborizadas, miniteatros e espaços de convivência ao ar livre até 2026. Por enquanto, nenhuma unidade foi entregue.

As secretarias estaduais de Meio Ambiente e Educação informam que promovem ações de educação ambiental para alunos do ensino fundamental e médio em 12 parques urbanos, a partir do projeto Escolas nos Parques.

A prefeitura da capital informou que, em 2024, quase 2.000 árvores de 134 espécies foram plantadas por mais de 8.000 estudantes da rede municipal, a partir de uma parceria com a ONG Formigas-de-Embaúba. A secretaria de Educação do município também disse que tem projetos de hortas pedagógicas com foco na sustentabilidade e na alimentação saudável.

“Escolas são fundamentais para o vínculo com a natureza, em especial nas periferias. Como são locais mais densos, há dificuldade de criar espaços verdes e qualificados”, afirma Camila Sawaia, arquiteta e diretora do Instituto CoCriança.

Mesmo nas escolas com áreas verdes, não há garantia de que as crianças terão acesso aos espaços.

Uma pesquisa da Fiocruz analisou o impacto da falta de contato com a natureza em crianças de dois a cinco anos no Rio de Janeiro. Das 76 educadoras ouvidas, que atendem cerca de 1.360 alunos, 64% disseram que as crianças passam dez horas na creche, mas, em média, apenas duas horas são ao ar livre.

Os pequenos também gostariam de passar mais tempo em meio ao verde. “Gosto de ir na praça e brincar de pega-pega”, diz Lorenzo Borro, de sete anos. “Eu gosto muito de brincar na terra e fico escavando toda hora, até já peguei uma minhoca na mão”, conta Carmem Borga, 7.


Esta reportagem foi produzida durante o 69º Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, patrocinado pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e pela Philip Morris Brasil. O curso teve ênfase em meio ambiente.



Fonte ==> Folha SP

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