[RESUMO] Criadora de uma obra de enigmática beleza, com cores depuradas e realização simples e primorosa, Eleonore Koch (1926-2018) enfim tem sua produção reconhecida, como atesta exposição em São Paulo. Autônoma e solitária, Koch manteve saudável distância de querelas e teses nacionalistas nas artes plásticas brasileiras, construindo uma obra que, na mescla de invenção com recordação, se empenhava em alcançar uma verdade para além das simples aparências.
As pinturas de Eleonore Koch nos atingem com uma força calma, um agudo senso de ordem e espaço reposicionados em enigmática beleza. Revelam um persistente sentido de harmonia, herdado sobretudo da relação entre cores e formas, construída pela ótica da síntese.
Não é difícil gostar de suas telas, inclusive por essas virtudes. O mais intrincado talvez seja entender sua aceitação atual, e, em contrapartida, a demora para que isso tenha ocorrido. Vou me atrever a aventar algumas hipóteses.
A distância, no tempo, da associação de sua obra à de Volpi talvez seja uma delas (possivelmente hoje suas diferenças se sobreponham a suas afinidades). Outra poderia ser sua condição de mulher —conhecida por sua vida autônoma e solitária, atrelada à indiferença a que sua produção foi submetida num passado não muito distante. E, sobretudo, as transformações que sofreu o meio da arte no Brasil.
O país deixou de lado muitas das mazelas locais, a exemplo das querelas tardias entre figuração/ abstração, construtivismo/ informalidade, temas que entre nós determinaram o atraso de muitas reputações.
A artista, a exemplo de Mira Schendel, sempre manteve um saudável afastamento dessas dicotomias e de muitas das teses nacionalistas, o que só ajudou a deixar mais ampla e diversa nossa própria concepção de arte brasileira.
A relação de Koch com Volpi, sabemos, foi profícua, indo muito além das simples aquisições técnicas —como a têmpera, por exemplo. Ela alcançou o mestre em referências mais complexas e mais difíceis de serem notadas. Como ele, tinha com a memória um vínculo muito produtivo.
Dizem que Volpi, na época em que trabalhava a partir da observação, gostava de olhar bastante para o motivo, para, em seguida, e de costas, evocá-lo em sua síntese. Essa condensação volpiana adquiriu características variadas ao longo de sua trajetória.
Seus temas quase sempre serão convertidos em esquemas, por exemplo, mas penso que suas pinturas, mesmo as do início, carregam um sentido de solidariedade entre as coisas, sua rememoração é acompanhada de um traço marcante de afeição, às vezes próximo do júbilo.
Quanto a Koch, sua imbricação com a memória se aproxima à de Volpi, embora sua pintura faça alusões a conteúdos poéticos diferentes. A solidão presente em suas composições, por exemplo, seria uma delas.
Parece-me que sua pintura tinha um desejo, talvez encoberto, de identificar reflexão com vida, invenção com recordação. E, a despeito de sua elegância, tais trabalhos não estariam muito disponíveis ao livre comércio do mundo: seriam muito misteriosos para que isso pudesse ocorrer.
Ao lembrarmos de alguma coisa, perdemos grande parte da diversidade do acontecido para fixarmos o que “sobrou”, e esse resíduo traz como marca a essencialidade e a estabilidade. Também refletindo nessa direção, entendo que a pintora não buscava praticar um testemunho realista do que via, mas que se empenhava em alcançar uma verdade para além das simples aparências. Uma possível prova disso seriam seus inúmeros e sensacionais estudos preparatórios.
Esses exercícios, antes de sua concretização final, em tela, eram comumente feitos sobre papel, a partir de uma imagem original. As cores, depuradas, construídas, também estariam distantes de uma simples imitação do mundo. E, se consigo alcançar o real significado de “colorista” atribuído a um pintor, acredito que Lore Koch foi uma das mais originais da nossa pintura.
Ao discorrer sobre o trabalho da artista, o colecionador e crítico Theon Spanudis apontou uma espécie de sacralização na representação de seus objetos, aspecto que ele associa ao universo da pintura metafísica italiana.
Suponho, porém, que muito do alheamento das telas da artista, além de decorrer desse lugar, estaria mais próximo da evocação de certa domesticidade solene, modesta e quase cenográfica.
Suas cores francas, sua fatura primorosa e simples, e mesmo seus temas não fazem alusão a questões filosóficas, não sugerem uma busca por conteúdos extrapictóricos, tampouco questionam suas essências. Parecem felizes em realizar, de maneira fenomenológica, suas aparências.
Outro dia reli o texto de Jean Genet sobre Giacometti. Ao refletir sobre algumas pinturas do artista, ele diz: “Cada objeto cria seu espaço infinito”. Em seguida, afirma que seria necessário, para a plena fruição da pintura, apreender sua dupla solidão: a imagem impressa pelo artista e a do objeto por ele representado.
Ao realizarmos esse duplo movimento, estaríamos conhecendo o real do espaço e a solidão dos seres e das coisas. Genet conclui com uma frase significativa: “Quem nunca ficou maravilhado com essa solidão, não conhecerá a beleza da pintura”.
Ao propor a equivalência de beleza e solidão, remetendo o objeto a uma espécie de buraco negro, ao oposto mesmo de sua condição, à infinitude, Genet me fez pensar nas pinturas de Eleonore Koch.
Diferenças e exageros à parte, creio que ela, em companhia de alguns outros artistas, realizou, entre nós, a difícil tarefa de encarnar o mistério, de tornar a aparência condição existencial.
Fonte ==> Folha SP