Daniel Viana, 23, descobriu sua paixão pelo teatro ainda na infância, levado pelos pais a peças e espetáculos. O contato com a arte fez com que ele decidisse, no ensino médio, seguir carreira na área e prestar licenciatura em artes cênicas na USP (Universidade de São Paulo), um dos cursos que exigem uma etapa extra no vestibular, a prova de habilidades específicas.
“Na época, não existia nada que me preparasse para essa etapa. Tive que me virar sozinho”, conta. Para ele, que está no último semestre do curso, a prova é contraditória. “Por um lado, ela exclui. Por outro, é muito bonita. Você esquece que está sendo avaliado.”
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A chamada prova de habilidades específicas busca avaliar se o candidato tem domínio mínimo das competências práticas exigidas pelo curso —como tocar um instrumento, interpretar uma cena ou desenvolver uma proposta visual.
Música, dança, artes visuais, arquitetura e artes cênicas estão entre as graduações que costumam aplicar esse tipo de exame. As provas variam conforme a área e podem incluir entrevistas, apresentações, exercícios técnicos, leitura de textos teóricos ou atividades em grupo.
A avaliação costuma ser feita por professores dos próprios cursos e combina critérios objetivos e subjetivos, como criatividade, expressividade e compreensão do material proposto. Na USP, a prova de artes cênicas dura quatro dias e inclui etapas teóricas com bibliografia obrigatória, oficinas de criação coletiva e uma entrevista oral.
Para Daniel, a experiência da prova foi muito divertida por se aproximar da vida universitária. Em vez de questões objetivas e individuais, ele passou quatro dias criando cenas e trabalhando em grupo. “Você já se sente um pouco aluno. Conhece os professores, os colegas, o espaço.” Segundo ele, a prova reúne jovens de todo o país apaixonados por teatro, criando um senso de pertencimento raro para aqueles que se sentiam deslocados na escola por gostar de arte.
Segundo Suzana Viganó, professora do Departamento de Artes Cênicas da USP, a prova não busca apenas talento para atuação. São considerados também aspectos como conhecimento artístico, abertura para a criação e disponibilidade para o trabalho coletivo.
Hoje, Daniel e colegas da graduação coordenam o cursinho Ruth de Souza —batizado em homenagem à atriz pioneira do teatro e da televisão brasileira. O projeto oferece preparação gratuita para jovens periféricos, negros, trans e de baixa renda que sonham em estudar artes cênicas na USP. De acordo com o estudante, em 2024, das 30 vagas do curso, 15 foram preenchidas por pessoas do cursinho.
Especialistas associam a existência dessas provas à ausência das artes na educação básica. Enquanto português, matemática e ciências fazem parte da grade desde cedo, disciplinas artísticas —quando presentes— são marginais, esporádicas ou pouco aprofundadas.
Para Vinícius Fraga, professor de música da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a prova é necessária porque a escola não ensina arte com a mesma profundidade que outras áreas. “Seria como permitir que uma pessoa completamente analfabeta entrasse num curso de literatura”, diz.
Segundo ele, nas habilitações instrumentais, os alunos precisam chegar à universidade com fluência técnica. “Não conseguimos absorver alguém que nunca teve contato com o instrumento. O curso parte de uma base já desenvolvida.”
A professora Luciana Sayure, coordenadora da graduação em música da USP, reforça que a prova específica não deve ser vista como obstáculo, mas como um mecanismo de alinhamento com as exigências do curso. “Não dá para formar um músico do zero em apenas quatro anos”, afirma.
Yasmin Pavão, 19, aluna do segundo ano de bacharelado em clarinete na Unicamp, preparou-se por anos para ingressar na graduação, com aulas na Emesp Tom Jobim, participação em bandas municipais e apoio de professores de teoria e técnica.
Na Unicamp, a prova de música é feita por vídeo, com três gravações: uma peça obrigatória (executada por todos os candidatos), uma de livre escolha e um exercício de percepção musical. “Cada vídeo tem uma nota. Se uma delas ficar abaixo da média, você está fora. Bate o medo, claro”, conta a estudante.
Mesmo sem formação técnica prévia, muitos candidatos conseguem ser aprovados nas provas de habilidades específicas.
Para Marcelo Lazzaratto, professor de artes cênicas da Unicamp, a presença de múltiplos avaliadores contribui para que o processo seja mais equilibrado. Ele observa que pessoas com pouca ou nenhuma experiência formal frequentemente conseguem se destacar e conquistar uma vaga, justamente por causa da diversidade de olhares na banca.
O professor Fraga acrescenta que muitos dos candidatos já demonstram uma vivência intensa em certos aspectos da arte, ainda que nunca tenham tido acesso a uma formação ampla ou sistematizada.
Desafios para vestibulandos de escolas públicas
Apesar de as provas não exigirem domínio técnico profissional, a exigência de familiaridade com a linguagem artística ainda representa um desafio, especialmente para estudantes da rede pública.
“Quando descobri que existia uma prova de habilidades específicas, pensei: ‘Como vão me cobrar algo que nunca fiz?'”, diz Juliana dos Santos Martins, 18, aluna do cursinho Ruth de Souza, de Daniel, que se prepara para o vestibular de artes cênicas na USP.
“Mas no cursinho me explicaram que a prova não quer avaliar se você já pode estrear, e sim se sabe trabalhar em grupo, se tem senso coletivo. Isso me tranquilizou.”
Para Lazzaratto, o problema não está nos candidatos, mas no sistema de ensino. “O que a gente mais vê é a falta de formação artística nas escolas públicas. Isso é mais preocupante do que qualquer deficiência técnica.”
Sem formação prévia em teatro, Juliana se diz motivada, mas a desigualdade pesa. “Acho que a prova em si nem é injusta. Injusto é o ensino básico. A escola deveria nos preparar para isso. A gente sai do ensino médio e nunca ouviu falar de metade do que vai cair.”
Luar Nunes, 18, também aluna do Ruth de Souza, teve experiências em oficinas e projetos culturais. Mesmo assim, vê barreiras no processo seletivo. “A maioria das pessoas da periferia acha que está atrasada, e às vezes está mesmo, porque nunca teve contato com teatro, nunca leu os livros cobrados, nunca soube nem que a prova existia.”
Ela aponta a carga de leitura como um dos pontos mais difíceis. “É desesperador. Tem que ler, entender o texto, o autor, o contexto histórico. E ainda estudar para todas as outras matérias. Quem trabalha ou estuda em tempo integral não consegue fazer tudo.”
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Fonte ==> Folha SP