Esvaziamento da cracolândia repete abolição sem inclusão – 25/06/2025 – Ilustríssima

A imagem mostra um grupo de pessoas em um ambiente interno, onde algumas estão usando capuzes. Um homem em destaque está fumando algo, enquanto outros parecem estar envolvidos em atividades diversas. O ambiente é rústico, com paredes de madeira e uma iluminação suave. Há uma sensação de intimidade e informalidade no espaço.

[RESUMO] Autor traça um paralelo entre a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, e a dispersão dos usuários de drogas na região da cracolândia, no centro de São Paulo, cujos pontos de maior concentração amanheceram vazios em 13 de maio deste ano. Nos dois casos, a aparente vitória sobre uma vergonhosa chaga social camufla a ausência de amparo e real integração. Hoje, dependentes químicos espalham-se isolados por diversos pontos da cidade, sem tratamento e cada vez mais marginalizados.

A abolição da região conhecida como cracolândia, no centro de São Paulo, no último dia 13 de maio, repetiu o roteiro da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888: a maioria dos escravos de drogas está dispersa sem tratamento que a integre à sociedade, assim como ficaram excluídos os escravizados libertos, com consequências que chegam até hoje a seus descendentes.

A Lei Áurea só extinguiu a escravidão, sem dar educação, dignidade, emprego ou terra aos libertos. Muitos nem saíram das fazendas em que viviam escravizados.

Hoje, 137 anos depois, a nova abolição apenas espalhou os escravos de drogas da região de Santa Ifigênia pela cidade, como uma metástase. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) vai ter que recontar as 72 microcracolândias que contou em 47 bairros de São Paulo, em 2023, porque novas já começaram a se formar.

Houve um momento de lembrança da princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea, na abolição atual: um grupo de zumbis do crack foi para a praça que a homenageia, em Campos Elísios, antigo ponto em que se concentraram até 2022, quando acabaram enxotados pela polícia.

E o foram novamente agora, e o serão se tentarem voltar: ali é onde deverá se instalar o governo estadual, segundos projetos em discussão, permanecendo o Palácio dos Bandeirantes, na zona oeste da capital, apenas como residência oficial do governador. E os imóveis na região central já estão se valorizando.

A abolição da cracolândia, com o esvaziamento de ruas antes ocupadas pelo fluxo de dependentes químicos, traficantes e sem-teto, foi tão repentina que mesmo o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), admitiu ter se surpreendido. Ele disse à imprensa que “estava tentando entender o que aconteceu”.

Teria sido o reassentamento voluntário, oferecido às 800 famílias da Favela do Moinho? Será uma prévia da planejada revitalização do centro? Ou, talvez, a ampliação do tratamento médico e da assistência social?

Para a ONG Craco Resiste, desde a abolição de 1888 o país carece de direitos humanos e sociais. Os escravos de drogas de hoje fugiram de balas de borracha e spray de pimenta para minicracolândias na região do Minhocão, embaixo do viaduto 25 de Março, no túnel sob a praça Roosevelt, na praça do Patriarca, em várias ruas do Bom Retiro e pela periferia.

Por isso, a deputada federal Tabata Amaral (PSB) resumiu a abolição da cracolândia como “grande maquiagem”, ou só uma “ação de marketing”. Moradores e comerciantes contaram à imprensa vários casos de violência policial testemunhados. Vídeos os mostraram nas redes sociais.

O vice-governador de São Paulo, Felício Ramuth, alertou que o fim da cracolândia pode não ser definitivo. A cautela não impediu as comemorações de “vitória” na prefeitura e no estado.

O secretário municipal da Saúde, Luiz Carlos Zamarco, declarou: “Estamos vencendo diariamente” o combate às drogas. Para provar, ele informou que, no dia 13 de maio, 47 pessoas procuraram o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), na praça Princesa Isabel —um número acima da média de 10/dia que esvaziou as ruas dominadas por cenas abertas de uso público de drogas, tidas como das maiores do mundo.

Dos 103 Caps existentes em São Paulo, 35 atendem dependentes de álcool e drogas. Muitos psiquiatras não os recomendam, porque lá não haveria o objetivo claro de recuperar os pacientes, estímulos para enfrentar a dura abstinência, recompensas para pequenas e sofridas vitória ou internações. Seria apenas um local de cuidados paliativos, de redução de danos.

O diretor da revista Dependência Química, Daniel Garcia, ele próprio um reabilitado que hoje se dedica a ajudar quem queira voltar à vida normal, quis publicar o testemunho de alguém que tenha “vencido” a drogadição com ajuda do Caps. “Não encontrei ninguém, em quatro anos. Infelizmente”, diz.

A cracolândia sobreviveu a todas as administrações municipais e estaduais desde 1990. Quando prefeito, em 2017, João Doria pensou que a tivesse abolido, mas só espalhou o fluxo pela cidade. Poucos dias depois, lá estavam todos de volta nas ruas cujo epicentro é a Protestantes.

O vice-governador Ramuth explicou a sua cautela em proclamar a vitória, que muitos no governo municipal e estadual já comemoraram, com um ditado curioso: “Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça”.

A dispersão obriga os agentes de saúde a irem atrás dos dependentes químicos. A expectativa é a de que, isolados, mais vulneráveis, eles aceitarão ajuda facilmente. E estarão mais expostos à Guarda Civil Municipal e à Polícia Militar.

Para os traficantes, era melhor quando havia concentração em um local. Só no primeiro trimestre deste ano foram apreendidos 600 quilos de drogas na cracolândia. Para o prefeito Ricardo Nunes, um dos motivos do esvaziamento, inclusive, foi a prisão do comandante do tráfico local, o Leo do Moinho.

Em Portugal, Lisboa fechou, demoliu e reconstruiu os locais que eram cenas abertas do uso de drogas, ao mesmo tempo que aumentou o número de abrigos e centros de reabilitação. O resultado é considerado exemplar.

A Suíça também fechou duas cracolândias e executou uma estratégia que chamou de “quatro pilares”: em primeiro lugar, a aplicação rigorosa e dura da lei, que incluiu a expulsão de estrangeiros e a proibição de acampamentos nas ruas; depois, a combinação de prevenção, tratamento e redução de danos.

O programa Recomeço, do governo estadual, que prevê tratamento, acompanhamento multiprofissional e reinserção social aos dependentes químicos, está diante de um novo desafio —o de atender populações de minicracolândias dispersas, que incluem 100 mil pessoas em situação de rua, ameaçadas pelo mesmo destino dos escravos libertos em um 13 de maio coincidente: a permanente marginalização.



Fonte ==> Folha SP

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