Expansão de eólicas offshore pode ameaçar pescadores artesanais – 30/05/2025 – Ilustríssima

A imagem mostra vários barcos ancorados. Os barcos, de diferentes tamanhos, estão refletidos na água calma, criando um efeito de espelho. O ambiente é predominantemente cinza

[RESUMO] Autores argumentam que o planejamento estatal ainda ignora as comunidades tradicionais que ocupam e preservam a chamada Amazônia Azul e defendem salvaguardas legais que reconheçam os povos do mar como agentes centrais da governança de seus territórios e impeçam a reprodução de lógicas coloniais na área.

O Brasil possui uma das maiores extensões marítimas do mundo, a Amazônia Azul. Apesar de sua importância geopolítica e econômica, o planejamento estatal ainda ignora as comunidades tradicionais que há séculos ocupam e preservam esse território. Esses povos têm suas vidas diretamente ligadas ao mar, mas permanecem sem reconhecimento legal e à margem das decisões que afetam seus espaços de existência.

A comparação com a Amazônia Verde é inevitável. Enquanto os povos indígenas conquistaram alguns instrumentos legais para a defesa de seus territórios e seguem na luta contra o marco temporal, enfrentando batalhas judiciais e recentes investidas do Senado Federal, como a aprovação da dispensa de licenciamento ambiental, os pescadores artesanais continuam invisíveis no ordenamento marítimo brasileiro.

A urgência de sua inclusão demanda atenção. O único avanço em termos de reconhecimento territorial são medidas pontuais, como o Taus (termo de autorização de uso sustentável), que, apesar de representar um passo, não garante segurança jurídica plena a esses grupos.

Maretórios: territórios sem fronteiras

O conceito de maretórios surgiu a partir da percepção dos próprios pescadores sobre sua relação com o mar. Mais que espaços físicos, são territórios vivos, moldados pelas marés, pela ancestralidade e pelos ciclos naturais que sustentam comunidades.

Em 2008, durante uma oficina na Reserva Extrativista São João da Ponta (PA), uma anciã provocou um questionamento fundamental: “Mas é território ou marés?”. A pergunta ressignificou a relação dos povos do mar com seu espaço, ampliando a noção tradicional de território para abarcar os saberes, as trajetórias e a espiritualidade associados às águas. A reflexão deu origem ao termo, reivindicando seu lugar no ordenamento territorial, que passou a ser mobilizado como instrumento de luta política, jurídica e epistêmica.

É importante destacar que os maretórios são territórios sem fronteiras fixas, onde a terra e o mar se entrelaçam em ciclos de vida e cultura. São espaços fluidos, moldados pelas marés e ocupados há gerações por comunidades pesqueiras que conhecem os ritmos do oceano como parte de sua própria existência. Mais que geografia, são identidade, ancestralidade e resistência.

Apesar de sua relevância para a cultura e a identidade dos povos do mar, os maretórios não são reconhecidos como categoria jurídica própria, embora propostas legislativas nesse sentido existam, como o projeto de lei 131/2020, que visa criar a figura dos territórios tradicionais pesqueiros. Em paralelo, diversos processos de cartografia social têm sido desenvolvidos pelas comunidades, documentando seus territórios de uso, seus calendários ecológicos e suas ameaças.

Em um país que avança muito timidamente na demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas, os territórios marítimos das comunidades pesqueiras seguem sem proteção, tornando-se vulneráveis à especulação imobiliária, à degradação ambiental e ao avanço de megaprojetos.

É nesse cenário que a Plataforma Territórios Vivos, desenvolvida pelo MPF (Ministério Público Federal) em parceria com a Agência de Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável e o CNPCT (Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais) apresenta-se como uma ferramenta digital importante para superar a invisibilidade dos maretórios.

A plataforma permite a realização de cartografias sociais participativas, possibilitando que as próprias comunidades registrem, de forma autônoma, suas territorialidades, seus modos de vida e as ameaças que enfrentam. A iniciativa reconhece o valor dos saberes tradicionais e propõe a produção de conhecimento territorial a partir das próprias epistemologias desses povos, promovendo justiça socioambiental e subsidiando políticas públicas de reconhecimento, proteção e consulta.

Exclusão das comunidades

O PEM (planejamento espacial marinho), em tese, busca organizar os diversos usos do mar, conciliando conservação, transporte e geração de energia. No entanto, na prática, ele tem sido construído sem a participação efetiva das comunidades pesqueiras, ignorando seus modos de vida e saberes ancestrais.

A exclusão das comunidades pesqueiras no PEM ameaça diretamente a justiça socioambiental. Além de ignorar o direito à consulta prévia, livre e informada (assegurado pela convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2002), o planejamento atual desconsidera as cartografias sociais produzidas pelos próprios pescadores, que documentam suas áreas de pesca, rotas e ameaças.

Sem esses registros, o mar corre o risco de ser tratado apenas como um recurso econômico, apagando sua identidade territorial. As críticas ao processo de construção do PEM destacam a falta de participação efetiva das comunidades tradicionais, que seguem invisibilizadas nos espaços deliberativos, reforçando desigualdades históricas e comprometendo sua autonomia sobre os maretórios.

Além disso, há uma desconsideração sistemática das cartografias sociais produzidas pelas próprias comunidades como documentos legítimos para subsidiar o planejamento territorial. Esses mapeamentos participativos não apenas revelam os usos tradicionais e os vínculos afetivo-culturais com os territórios, como também indicam zonas de conflito, ameaças socioambientais e prioridades de preservação. Ignorá-los equivale a invisibilizar não apenas territórios, mas modos de vida, práticas sustentáveis e formas comunitárias de governança do mar.

O risco, portanto, é que o PEM seja capturado por interesses empresariais e técnicos, promovendo uma ocupação industrial dos mares, pautada por megaprojetos de infraestrutura e energia, em detrimento das formas de vida e de reprodução social das comunidades pesqueiras. A não inclusão dos maretórios nesse processo compromete não só a efetividade ambiental do planejamento, como também aprofunda desigualdades históricas, reforçando padrões coloniais de gestão do território.

Para que o PEM brasileiro se alinhe aos compromissos constitucionais e internacionais de justiça socioambiental, é urgente que incorpore mecanismos de participação qualificada, reconheça as cartografias sociais como instrumentos válidos de planejamento e promova a interculturalidade na formulação das políticas públicas do mar. Sem isso, a chamada Amazônia Azul continuará sendo tratada como fronteira econômica, não como território de direitos.

Expansão da energia eólica offshore e novos desafios

A busca por energia renovável avançou sobre o território marítimo brasileiro, com a regulamentação da energia eólica offshore pela lei 14.300/2022. Se por um lado essa expansão representa um passo importante para a transição energética, por outro, ela ameaça os maretórios, alterando rotas da pesca artesanal e limitando a capacidade de subsistência e segurança alimentar dos pescadores.

Parques eólicos em alto-mar exigem extensas áreas de exclusão, impactando diretamente as rotas tradicionais de pesca artesanal. A falta de uma regulamentação específica para proteger as comunidades pesqueiras pode transformar a energia limpa em um novo vetor de injustiça socioambiental, repetindo padrões históricos de exclusão e apropriação predatória.

A ausência de salvaguardas legais para comunidades tradicionais nos trâmites de licenciamento ambiental revela um grave déficit de justiça socioambiental. O atual modelo de expansão energética corre o risco de reproduzir lógicas coloniais, deslocando a apropriação dos bens comuns do território terrestre para o mar, invisibilizando pescadores artesanais e suas formas de conservação dos ecossistemas marinhos.

Para que a transição energética seja verdadeiramente justa, ela deve ser democrática, participativa e interseccional, reconhecendo os povos do mar como agentes centrais na governança de seus territórios. Isso exige não apenas sua inclusão nos processos decisórios, mas também a criação de normas de proteção territorial, socioeconômica e cultural que garantam o respeito à sua autodeterminação. Sem esses mecanismos, a transição para fontes limpas poderá perpetuar as mesmas estruturas de exclusão que historicamente marcaram os projetos de “desenvolvimento” no Brasil.

Por um mar de direitos

A Amazônia Azul não pode ser reduzida a um espaço geopolítico e econômico. Assim como a Amazônia Verde, ela abriga formas de vida, territórios culturais e direitos coletivos. A invisibilidade dos maretórios compromete tanto a proteção dessas comunidades quanto a sustentabilidade das políticas ambientais e do ordenamento marinho.

Reconhecer a Amazônia Azul como território de direitos exige que o Estado proteja os maretórios como espaços legítimos de existência e resistência. Pescadores tradicionais não apenas habitam essas águas, eles constroem e preservam o mar com práticas sustentáveis ignoradas pelas políticas públicas e normas marítimas.

O PEM precisa incorporar as cartografias sociais e reconhecer os maretórios como base para políticas justas. A Marinha do Brasil e o Ministério do Meio Ambiente devem atuar de forma integrada com movimentos sociais, academia e órgãos de controle, garantindo transparência e participação.

O avanço do PEM e da energia eólica offshore exige um redirecionamento urgente da governança dos mares. Excluir comunidades dos processos decisórios e ignorar suas cartografias perpetua desigualdades históricas sob novas roupagens. A transição energética não pode repetir os vícios do desenvolvimento autoritário e excludente.

Incluir os maretórios nas políticas públicas por meio do reconhecimento jurídico e da valorização de suas epistemologias não é apenas uma demanda legítima, é um imperativo constitucional e ambiental. Sem essa inclusão, o Brasil compromete seus compromissos internacionais e a viabilidade de uma soberania marítima democrática e plural.

A construção de uma política marítima soberana e inclusiva depende do pacto federativo com os povos do mar, os verdadeiros guardiões da Amazônia Azul.



Fonte ==> Folha SP

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