Em julho, Fafá de Belém, 68, fez o show de encerramento da Semana do Clima da Amazônia, em Belém (PA), apenas alguns dias depois de dar uma conferência na Universidade Autônoma de Lisboa, na qual falou dos desafios da COP30 –que ocorrerá em sua cidade natal entre os dias 10 e 21 de novembro. Na ocasião, foi apresentada ao público português como artista e ativista.
Atuante na campanha histórica das Diretas Já, Fafá abraçou outra causa há algum tempo, a defesa da amazônia —ou, mais especificamente, a da participação de vozes locais nas políticas de preservação do meio ambiente.
Fafá de Belém vive na ponte transoceânica entre Brasil e Portugal há sete anos, quando comprou um apartamento no bairro da Estrela, em Lisboa. Em uma praça em frente a sua residência na capital portuguesa, ela conversou com a Folha sobre a conferência e a amazônia.
A senhora tem defendido que a amazônia não tem sido ouvida nos preparativos para a Conferência do Clima de Belém (COP30). Por que acha isso?
Em dezembro de 2023, estive em Nova York para o Pacto Global das Nações Unidas. Eu ia participar de um evento de música, mas estava curiosíssima, pois Belém tinha acabado de ser escolhida como sede da COP30. E fiquei muito decepcionada, porque não havia um intelectual amazônico, um professor amazônico. Pensei: como eles podem falar de amazônia sem se preocupar em ouvir a amazônia? Vamos um pouco para trás.
No Brasil, minha casa é em São Paulo. Em 2022, o Coldplay tocou lá. No show, colocavam imagens da amazônia, em outra ocasião o cantor (Chris Martin) usou uma camiseta “salve a floresta”. Ora, se eles tivessem real preocupação, e se quisessem realmente criar um fundo, começassem por fazer um show num estádio da Amazônia, tentando entender que região era aquela.
Os que querem salvar a amazônia não se preocupam em conhecer a amazônia?
Uma pessoa pela qual não tenho muito apreço me disse: “Fafá, mas vocês teriam condições de receber um espetáculo do porte do Coldplay em Belém?”. Eu respondi: “Você conhece o U2? Conhece o Iron Maiden? Eles já estiveram lá”. Temos um dos maiores estádios do Brasil. É como se não houvesse aparelhagem, não houvesse público.
Há muito preconceito, muita arrogância. Esse preconceito e essa arrogância nos ofuscam cada vez mais. Querem fazer uma COP na amazônia sem ouvir nosso pesquisador, sem ouvir nosso caboclo, o homem que cuida da floresta. Você acha que quem acaba com a floresta e polui os rios são as comunidades amazônicas? Uma das maiores ignorâncias que já vi é o Ibama proibir peças indígenas de arte plumária. Você acha que um índio mata um pássaro para botar na cabeça? Há muita ignorância sobre a nossa cultura. Minha missão é ser um canhão de luz.
O que merece ser iluminado em Belém e na amazônia?
Alguém sabe que “Azulão”, clássico da música brasileira, é do paraense Jayme Ovalle? Alguém lembra que um dos maiores compositores eruditos do mundo é Waldemar Henrique, autor de “As Lendas da Amazônia”? Alguém sabe que Villa-Lobos ia a Belém ouvir Waldemar? Nós temos o Instituto Carlos Gomes, criado pelo próprio Carlos Gomes, que quando foi ao Pará enlouqueceu com aquilo e fez “O Guarani”. O resto do Brasil olha para Belém e pensa que só existe tecnobrega e carimbó. Temos isso, mas temos muito mais coisas.
Quem seriam os jovens artistas?
Existe todo um movimento de música e cultura periférica que pode ser visto no Festival Psica. Existe o projeto Cores do Pará, que envolve meninos, descendentes de indígenas, grafitando muros. Movimentos como o Engajamundo, jovens ligados na defesa do meio ambiente, também estão bastante presentes no Pará e na amazônia em geral.
Acha que a COP 30 vai chamar a atenção para essa riqueza cultural de Belém?
Belém é uma cidade cheia de muitas histórias, mas nós fomos sendo esquecidos. A amazônia foi sendo apagada, o esplendor de Belém começou a ser ofuscado e viraram de costas para nós. No século 19 éramos a segunda capital cultural do Brasil, depois do Rio de Janeiro. Espetáculos de teatro e ópera chegavam da Europa e, no caminho para o Rio, faziam os ensaios em Belém e às vezes se apresentavam lá.
O Grande Hotel, que infelizmente foi destruído, era uma cópia do Hotel de Mônaco. Havia um grande complexo cultural, com o Grande Hotel, o Cinema Olímpico, o primeiro cinema do Brasil, o Teatro da Paz, que foi construído antes do Teatro Amazonas, e o Bar do Parque, que nunca fechava. Parte dessa tradição cultural persiste. Fui alfabetizada em português e francês num colégio de freiras. Soube no ano passado que Belém é a segunda cidade do Brasil onde pessoas já formadas procuram fazer um segundo curso universitário.
A proximidade da COP tem levantado algumas questões importantes, como a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Como vê isso?
Nenhum de nós quer, mas nenhum de nós pode impedir. Já está resolvido e decidido.
Ainda não foi tudo resolvido, há uma grande controvérsia em torno do assunto.
Minha sensação é de que está decidido. Convivo há muitos anos com a política brasileira, militando ou não você entra na política e nunca mais consegue sair dela. Os lobbies são muito poderosos, não é? Muitos cientistas dizem que vai ser um desastre para a região. Agora, é uma região muito miserável. Eu acho que é hora de nos mobilizarmos e protegermos as nossas pessoas. Se vai haver dano, evitar que esse dano afete os ribeirinhos.
Eu não sou pesquisadora, não sou estudiosa do petróleo. Uma coisa que eu achei interessante, por incrível que pareça, é que não vai haver base em terra. Seria danoso demais para a nossa sociedade. Junto com milhares de homens vem a prostituição, o abuso das crianças, o abuso das famílias. Então pelo menos a base vai ser em alto-mar e, segundo eu soube, muito afastada.
Outra questão é a falta de hospedagem para os que pretendem ir à COP30. Como resolver isso?
De uma forma muito básica. Eu estava conversando sobre isso num botequim em Belém e o garçom falou: “Fafazinha, a gente recebe 3 milhões de pessoas aqui no Círio de Nazaré”. É de uma poesia isso… Você não vai ter talvez a estrutura de recepção que teria em São Paulo, nem o treinamento. Mas estamos correndo atrás.
O que não pode é uma suíte de hotel custar R$ 35 mil. As delegações de países como Noruega e Países Baixos já estão reclamando, porque não cabe no orçamento deles. Há também os brasileiros de outros lugares que querem ir para lá e não conseguem. Mas agora, no olho do furacão, está todo mundo colaborando. Estão transformando escolas, lugares de fóruns, em grandes dormitórios. Então eu acho que para o brasileiro, para o mais simples, para a garotada que está querendo conhecer Belém, vamos correr atrás de entregar essas hospedagens.
Que tipo de legado a COP pode deixar para Belém?
Acho que Belém precisa de um choque de Medellín. Tenho uma amiga que fez parte dessa iniciativa e acho que, como Medellín, Belém necessita de um projeto de longo prazo, que lá durou 25 anos.
Em Medellín eles criaram o que hoje chamam de urbanismo social.
Sim, sem se ir à sociedade, sem agregar as pessoas, não dá para ter mudança. Não tem nada que detenha o povo, mas entendo que tem que ser feita uma comissão incluindo pensadores, sociólogos, a sociedade civil, como foi feito em Medellín. Eu proponho isso já há muitos anos, a três prefeituras diferentes. Ninguém me ouviu, mas vou continuar. Nosso saneamento básico, a malha de escoamento pluvial, por exemplo, é de 1910, precisa ser modernizada. Nossas águas são incontroláveis. Pode acontecer em Belém o que aconteceu em Porto Alegre.
Como a senhora disse, a articulação da sociedade civil é importante, mas em Medellín foi fundamental o apoio dos políticos em geral. A Amazônia tem políticos à altura desse desafio?
Estão faltando bons políticos não apenas na Amazônia, mas no Brasil inteiro. Eu olho para o Congresso de 1985 e olho para o Congresso de hoje. É outra fotografia. Nos tempo da campanha das Diretas Já existiam pessoas realmente interessadas em fazer uma transformação. Políticos de direita e de esquerda que batiam de frente, que discutiam, enfim, mas que criavam. Havia um diálogo ali.
O que eu vejo hoje é cada um querendo o seu quinhão, querendo o seu ministério rico, o fulano que só vota num projeto se receber uma emenda parlamentar. Acho também que a sociedade precisa se integrar mais. O ódio está muito na bandeira de todos os lados. Se não é como eu quero, cancela. Fiz um programa de rádio onde me perguntaram: “Qual a pior pessoa do meio artístico que você conheceu, conheceu Regina Duarte?”. Aí eu falei: “Cara, não fui amiga da Regina, acho que ela cometeu um equívoco, mas é uma das maiores atrizes do Brasil”.
Qual equívoco Regina cometeu em sua opinião?
Ela podia até ter aceito o cargo no governo Bolsonaro, mas defender que nunca houve ditadura no Brasil? Ela que fez parte da militância, eu lembro da campanha do Franco Montoro, a Regina do meu lado, do Fernando Henrique, do Mário Covas, ela falando contra a ditadura. Ela deveria fazer um exercício de reflexão. A entrevistadora me disse que esperava que eu fosse massacrá-la, hoje em dia todo mundo conta que a gente vai massacrar o outro. Acho que está na hora não de se omitir, mas de dar um toque no outro.
A senhora vive há bastante tempo entre Brasil e Portugal, com uma casa em São Paulo e outra em Lisboa. Como compara os dois países?
Cresci num tempo de colaboração, em que as pessoas se ajudavam. Eu adoro Portugal porque sinto isso ainda aqui, muito fortemente. Há a tal da disputa, você disputa algumas coisas, mas não precisa aniquilar o outro para existir. É diferente do Brasil e também dos Estados Unidos, com essa coisa da mídia social, da ilusão, do influencer… Veja o caso das bets. As pessoas que recebem Bolsa Família gastam 80% do que recebem nas bets com esperança de ganhar algum dinheiro. Ninguém ganha dinheiro de jogo. E isso está normalizado. Com a influência do jogador de futebol que ganha milhões, do apresentador de telejornal… Não pode. Então, o Brasil está assim…
RAIO-X | Fafá de Belém, 68
Belém, 1956. Cantora com mais de 30 álbuns lançados e mais de 15 milhões de LPs ou CDs vendidos. Nas últimas décadas tem apoiado os movimentos pela preservação da amazônia. É embaixadora do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). Divide seu tempo entre São Paulo e Lisboa (Portugal)
Fonte ==> Folha SP