Ida Lupino, uma das principais atrizes de sua época, trabalhou como diretora, enfrentando um ambiente avesso a mulheres na direção e fortalecendo o cinema independente nos anos 1940 e 1950. É esse trabalho que o IMS Paulista reúne a partir desta terça-feira (6).
Começa com três dos sete longas para cinema que dirigiu. O cinéfilo poderá ver, neste mês, “O Mundo É o Culpado”, de 1950, “O Bígamo”, de 1953, e “Anjos Rebeldes”, de 1966. Os outros filmes, incluindo parte da produção para a televisão, serão exibidos posteriormente.
Dorothy Arzner tinha realizado seu último filme em 1943. Até então, era a única mulher a dirigir filmes sonoros em Hollywood. Poderosa como atriz de filmes de sucesso e prestígio, Lupino resolveu se aventurar no terreno pedregoso da direção, tornando-se a segunda a furar o cerco.
Na época, poucos homens conseguiram trabalhar com dignidade numa Hollywood em que os estúdios tinham muita força. Que Lupino tenha realizado seis longas entre 1949 e 1953, é um feito inigualável para uma mulher. Só em 1966, Lupino assinaria outro filme, “Anjos Rebeldes”. Entre 1954 e 1965, dirigiu dezenas de episódios e médias para a TV.
Para a cineasta Lupino, habituada a orçamentos modestos, trabalhar na TV não foi difícil. Era uma oportunidade de treinar o estilo com ainda menos pressão. Mas era muito pouco para uma autora de filmes impressionantes e muito bem dirigidos, com uma sensibilidade rara e visão aguda da sociedade.
Entre 1948 e 1955, Lupino montou, com Marvin Wald e Collier Young, uma produtora independente chamada The Filmakers, com a qual conseguiu produzir esses longas e alguns de outros diretores.
Um homem com uma grande cicatriz no pescoço persegue uma moça pelas ruas desertas de uma noite escura. No final da sequência, a moça é violentada, sem qualquer testemunha, apesar da buzina emperrada que toca incessantemente.
Esse momento impressionante de tensão, totalmente derivado do filme noir, está no começo de “O Mundo é o Culpado”, uma impactante análise da sociedade patriarcal e machista a partir de uma moça violentada que procura sobreviver ao trauma.
Lupino é muito inteligente na representação dessa sociedade doente, que culpabiliza a vítima e dificulta sua recuperação. Não é bem o mundo o culpado, obviamente, mas o sistema que permite abusos de todas as espécies contra mulheres. Ontem como hoje, vale dizer.
Mas a inteligência de Lupino não para aí. Ela mostra que há o outro lado. O pastor que atravessa o caminho da moça violentada parece carregar também algum trauma, que nunca saberemos qual. Ajudar na recuperação da moça parece ser para ele uma espécie de salvação, e algumas das imagens mais belas nos mostram com delicadeza esse sentimento.
“O Bígamo”, de 1953, nos convida a entender a vida de um homem com duas famílias, sem julgamentos ou preconceitos. É um dos filmes mais modernos do cinema americano, mas ainda há quem o subestime.
Um filme noir em que todos os personagens são simpáticos, como disse a crítica Carla Oliveira. Quase um anti-noir, um anti “O Mundo é o Culpado”. Há investigação, estrutura em flashback, mulher fatal, crime, julgamento. Tudo de um modo radicalmente diverso do que nos acostumamos a encontrar.
A delicadeza de Lupino nos dá algumas das trocas de olhares mais tocantes do cinema americano, além de uma interpretação magnífica de Edmond O’Brien, que nos faz simpatizar com o bígamo e entender uma certa nobreza em sua alma.
Tal ousadia não seria recompensada. Pelo contrário. Com a derrocada da Filmakers, Ida Lupino passa a dirigir apenas para a TV, além de seu trabalho como atriz.
Sua volta ao cinema se dá na década seguinte, com “Anjos Rebeldes”, de 1966. Num internato religioso, as necessidades da adolescência precisam de criatividade para serem saciadas. Belo filme em cores, num tom mais leve que o de seus filmes com a The Filmakers.
Lupino geralmente propõe uma relação franca de suas personagens rebeldes com as autoridades responsáveis. Seu cinema, mais uma vez, tende à conciliação, sem deixar de ser crítico e preocupado com a condição feminina quando necessário.
Para a continuação da mostra, em junho, teremos, além do trabalho para a TV e dos dois primeiros longas dirigidos por Lupino –”Mãe Solteira”, de 1949 e “Quem Ama Não Teme”, de 1950, dois longas gigantes, os melhores de sua carreira como cineasta.
“Laços de Sangue”, de 1951, sobre uma tenista e suas relações familiares, é um dos mais belos tratados sobre o espaço da tela conforme ocupado pela movimentação de atores e atrizes. Um primor de encenação que mereceu, do crítico Jacques Lourcelles, a comparação com Mizoguchi.
“O Mundo Odeia-me”, de 1952, é o único filme de Lupino que fica confortável dentro da classificação noir. Nele, dois amigos dão carona a um psicopata. Lupino mostra mais uma vez que não precisava de bom orçamento para que seu talento como diretora ficasse evidente.
E na tentativa de corrigir um preconceito, não devemos cair em outro. A numerosa produção televisiva da diretora tem muitas pérolas escondidas. Alguns episódios que Lupino dirigiu estão entre os melhores de suas respectivas séries. Vale ver sobretudo “The Masks”, episódio de “Além da Imaginação”, e “Nº5 Checked Out”, episódio da série de médias independentes “Screen Directors Playhouse”.
Como disseram suas exegetas Therese Grisham e Julie Grossman, os filmes dirigidos por Ida Lupino constituem uma história importante de autoria feminista. Por isso a mostra do IMS tem importância inegável.
Fonte ==> Folha SP