Janete Clair mudou a TV ao incorporar a realidade nacional – 24/04/2025 – Ilustrada

Janete Clair mudou a TV ao incorporar a realidade nacional - 24/04/2025 - Ilustrada

É um clássico a história de como Janete Clair chegou à Globo, onde se tornaria a maior autora da televisão brasileira. Chamada a dar um jeito em uma novela que já estava no ar com mais de cem personagens, um roteiro totalmente sem sentido e péssima audiência, ela promoveu um terremoto que só deixou quatro vivos. Para os sobreviventes, criou um novo enredo, que se passava duas décadas depois.

Era o ano de 1967, e Janete, cujo centenário é comemorado nesta sexta-feira (25), já havia se tornado uma reconhecida autora de radionovelas quando foi chamada para chacoalhar a TV. Em 1969, seu marido, o dramaturgo Dias Gomes, iria se juntar a ela como autor na Globo, e ambos seriam pilares da teledramaturgia nacional.

Um terremoto não era nada para Janete, que chegou a escrever três novelas simultaneamente. Entre 1967 e 1973, fez oito tramas das 20h consecutivas na Globo, em uma época em que os autores trabalhavam sozinhos, não tinham equipes de roteiristas assistentes, como hoje em dia. A audiência só subia, e uma delas, “Selva de Pedra”, de 1972, teve um capítulo que atingiu 100% no Ibope.

Na vida real, Janete encarava a morte de dois filhos, um deles com poucos dias de vida e outro com três anos, além de seis abortos, em meio às ameaças da ditadura militar ao marido, célebre membro do Partido Comunista. Com três filhos pequenos, sustentou a casa sozinha por um tempo, quando Dias estava vetado pela censura no teatro e ainda não havia sido contratado pela Globo.

Sua máquina de escrever resolvia qualquer problema. Depois do terremoto de 1967 —a novela era “Anastácia, Uma Mulher Sem Destino”— teve de lidar com um incêndio, esse de verdade, em 1969. Ela já havia escrito o último capítulo da novela das 20h “Rosa Rebelde”, que logo seria gravado, quando a sede da Globo em São Paulo pegou fogo.

Lá era produzida “A Cabana do Pai Tomás”, das 19h, que teve de ser transferida para Rio. Como isso, a emissora não iria conseguir por no ar imediatamente uma nova novela das 20h, e pediu a Janete para prolongar “Rosa Rebelde”. Ela meteu “20 anos depois” na história e fez mais 100 capítulos.

Em 1975, novamente, sua máquina de escrever sem limites salvaria a Globo após a explosão de uma bomba, metaforicamente aqui, mas foi uma bomba e tanto.

Na ocasião, a escritora, que dominava o horário das 20h com uma sequência de sucessos —e já era conhecida como a “Nossa Senhora das Oito”—, havia sido escalada para fazer uma novela das 19h, horário de tramas “mais açucaradas”.

A mudança seria feita para que Dias Gomes estreasse no horário nobre, com “Roque Santeiro”. O autor comunista, que imprimia em suas obras um forte tom de crítica social, costumava escrever tramas para as 22h e, prestigiado, foi convidado a criar a primeira novela das 20h em cores –em 1972, “O Bem-Amado”, de sua autoria e exibida às 22h, havia inaugurado as cores nas novelas brasileiras e se tornado um dos maiores sucessos de público e crítica da televisão.

Na véspera da data marcada para a estreia, contudo, “Roque Santeiro” foi censurada pela ditadura. Uma proibição abrupta como aquela, de uma novela pronta para estrear, era inédita. A Globo pôs no ar uma reprise compacta de “Selva de Pedra”, que, de novo, teve ótima audiência, e precisava fazer uma nova novela às pressas.

Embora magoada com a mudança para as 19h, Janete se armou de sua máquina de escrever, conforme lembrou Artur Xexéo em uma biografia da escritora, e decidiu: “A novela das oito não vai sair aqui de casa. Eu vou escrever”.

Apenas três meses depois, entrava no ar “Pecado Capital”, em que Janete não só utilizou o mesmo elenco de “Roque Santeiro” como imprimiu na história uma linguagem mais realista, se aproximando do estilo de Dias.

Essa passagem é lembrada pelo músico Alfredo Dias Gomes, filho do casal, no curta-metragem de animação “A Escritora”, que ele lança neste sábado, 26, às 20h, no Cine Joia, no Rio, em homenagem ao centenário da mãe.

Será também o lançamento de um single em que Alfredo grava uma versão jazzística da música clássica “Clair de Lune”, a preferida de Janete, que inspirou o seu nome artístico. Nascida em Conquista, em Minas Gerais, filha de uma costureira portuguesa e de um comerciante libanês, ela se chamava Jenete Stocco Emmer —Jenete mesmo, e não Janete, em razão do sotaque do pai, que confundiu o escrivão na hora do registro da filha no cartório.

Alfredo é também curador de uma exposição no Museu da Imagem e do Som do Rio, a partir de segunda-feira (28), que mostrará, além de troféus, gravações em Super 8 da família e depoimentos em vídeo, originais de sinopses de novelas icônicas.

Entre eles, estão os de “Pecado Capital”, de “Selva de Pedra” e o de “Irmãos Coragem” –essa novela, de 1970, foi primeiro grande sucesso da teledramaturgia da Globo, e sua sinopse, datilografada, traz anotações à mão feitas por Janete.

Há ainda uma seleção de originais de capítulos de radionovelas e telenovelas. Um deles, de “Eu Prometo” (1983), foi todo escrito à mão enquanto Janete estava internada, com câncer. A autora morreu em 16 de novembro de 1983, quando a novela estava no ar e, em seus últimos dias, no hospital, chegou a ditar dez capítulos para o marido –o destino do protagonista, Lucas Cantomaia (Francisco Cuoco), ela ditou no caminho entre o centro cirúrgico e o quarto, depois de ser submetida a mais uma operação.

Janete merece um grande resgate. Amada pelo público, passou a vida tendo se justificar à intelectualidade de esquerda, que a acusava de “alienar” a audiência com suas novelas, enquanto o Brasil enfrentava a violência da ditadura militar.

É uma injustiça sem tamanho. Embora seu estilo fosse mais romântico, melodramático mesmo, Janete foi fundamental para incorporar a realidade brasileira à teledramaturgia, muitas vezes com críticas contundentes. Reportagens e mais reportagens, no entanto, a colocavam como “alienada” em oposição ao marido, “engajado”.

Em comparações do salário e do sucesso dos dois, embaladas pelo machismo, ela era aquela que “apelava para o escapismo”, enquanto ele, o intelectual que traçava “críticas profundas da sociedade”.

A própria ditadura, contundo, percebia que Janete, em meio às juras de amor, fazia, sim, crítica social, e controlava suas novelas com uma censura rigorosa.

Em uma série de documentos do SNI, o Serviço Nacional de Informações da ditadura, Janete é colocada como “problemática” para o governo, que também a chamava de esquerdista e até de comunista —a autora nunca se filiou ao Partido Comunista, inclusive porque, com o marido extremamente visado, algumas vezes tendo de se foragir, ela se via na obrigação de garantir a proteção da família.

Um dossiê do SNI avalia, por exemplo, que a novela “Irmãos Coragem” é “uma demonstração, em forma de crítica, do latifundiário dos garimpos, principalmente na opressão aos garimpeiros, com cobertura ostensiva de autoridades policiais”.

Amigo da família, e também intelectual do Partido Comunista, o poeta Ferreira Gullar certa vez reconheceu o talento de Janete. Ele ajudava Dias Gomes a tentar achar um caminho para uma personagem da novela “Sinal de Alerta” (1978), uma operária que era fiel ao marido mas que, para a história avançar, precisaria traí-lo.

Os dois não achavam a traição verossímil, até que Janete, que ouvia a conversa, não se aguentou: “Mandem o realismo à merda! Ela deve ter o caso e, além de tudo, ficar grávida. O público vai adorar”. Gullar admitiu que ela tinha razão: “Nós somos dois míseros realistas. Janete Clair é a verdadeira artista”.



Fonte ==> Folha SP

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