Se a vida adulta de Jesus de Nazaré já costuma ser objeto de debates intermináveis entre os historiadores, a infância e a adolescência dele são ainda mais misteriosas —nem os textos bíblicos chegam a abordar em detalhes essa fase de sua vida. Em um novo livro, a historiadora britânica Joan Taylor recorre a uma série de fontes escritas e arqueológicas para tentar sanar algo dessa lacuna, situando o jovem Nazareno em seu contexto familiar, social e até geopolítico.
O resultado está bem resumido no subtítulo do livro “Boy Jesus” (“Menino Jesus”, ainda sem tradução brasileira): “Crescendo como membro do povo judeu em tempos turbulentos”. Segundo Taylor, que é especialista em origens do cristianismo do King’s College de Londres, é preciso tirar da cabeça as imagens idílicas do pequeno Jesus numa Galileia verdejante e cheia de carneirinhos, comum nas aulas de catequese para crianças.
Os carneiros, é claro, muito provavelmente estavam lá, assim como muitos outros animais domésticos. Disputavam espaço com plantações de todo tipo numa região densamente povoada e dividida entre pequenas propriedades de camponeses empobrecidos e as grandes fazendas da aristocracia judaica. A fome era comum, assim como as epidemias que muitas vezes a acompanhavam, para não falar dos impostos abusivos e da falta de emprego para quem não tinha nem mesmo um pequeno pedaço de terra.
A Galileia onde Jesus cresceu também era um caldeirão multiétnico, no qual famílias de imigrantes vindos da Judeia, mais ao sul, volta e meia encontravam pagãos de origem fenícia ou síria. Também havia membros desses grupos que tinham sido convertidos ao judaísmo à força ou adotado a religião voluntariamente algumas gerações antes.
E, justamente entre o nascimento e o começo da adolescência de Jesus, partes da região tinham se tornado terra arrasada repetidas vezes por conta dos confrontos entre grupos rebeldes judaicos e os soldados da dinastia do rei Herodes, muitas vezes apoiados pelos verdadeiros senhores do Oriente Próximo na época, os romanos.
É quase certo, por exemplo, que os habitantes de Nazaré tenham presenciado as chamas e os gritos dos moribundos durante o saque da cidade de Séforis (a apenas 6 km de distância). A atrocidade foi perpetrada pelos homens do general romano Públio Quintílio Varo —a maior parte da população de Séforis teria sido executada ou vendida para mercadores de escravos no ano 4 a.C, segundo as fontes antigas estudadas pela autora. Mesmo com desastres do tipo, porém, os habitantes da Galileia mantiveram a fama de insubordinados e prontos para a guerra nas décadas seguintes.
Segundo Taylor, foi nessa panela de pressão que Jesus passou seus primeiros anos de vida. Com base na análise detalhada dos Evangelhos canônicos (isto é, os aceitos oficialmente na Bíblia) e de outros textos cristãos, judaicos e pagãos, a especialista defende que há ao menos algumas informações historicamente plausíveis nas narrativas tradicionais sobre o nascimento e a infância de Cristo.
Ocorre que, dos textos dos evangelistas do Novo Testamento, apenas dois, os Evangelhos de Mateus e de Lucas, trazem algum detalhe substancial sobre os primeiros anos da vida de Jesus. Ambos falam do noivado de Maria com José e da concepção milagrosa da mãe de Jesus. E ambos retratam o menino como descendente de David, o grande rei do passado israelita —tanto é assim que Jesus, nas duas narrativas, nasce em Belém, cidade de origem do próprio David, a 10 km de Jerusalém.
Mas as diferenças também são substanciais, a começar pelas genealogias de Jesus, que não batem no caso de vários ancestrais (além de ambas desembocarem em José, que não seria o pai biológico do menino, segundo os evangelistas). Só Mateus fala da vinda dos Magos em busca do Messias, enquanto só Lucas fala do nascimento na manjedoura e da presença de anjos e pastores na cena.
Além disso, cada um dos evangelistas usa caminhos diferentes para explicar porque seu personagem é conhecido como Jesus “de Nazaré” —em Mateus, a Sagrada Família é natural de Belém e só foi para a cidadezinha da Galileia bem depois do nascimento do menino, enquanto em Lucas eles partem de Nazaré para Belém porque tinham de se registrar num censo promovido por Roma, o que acaba fazendo com que Jesus nasça ali e a família, mais tarde, volte para Nazaré.
Essas diferenças levaram muitos historiadores a argumentar que o nascimento em Belém seria uma criação teológica dos evangelistas, que reforçaria o cumprimento de profecias sobre a cidade que estão presentes no Antigo Testamento.
Taylor, porém, argumenta que tanto a associação de Jesus com a dinastia de David quanto o nascimento em Belém são tradições presentes em tantas fontes diferentes do cristianismo primitivo que provavelmente refletem histórias contadas pela família do Nazareno.
Para ela, uma pista importante é o fato de que parentes próximos de Jesus, como o líder conhecido como “Tiago, o irmão do Senhor” (um primo de primeiro grau, segundo a tradição católica, mas mais provavelmente também filho de José e Maria, segundo a maioria dos historiadores), tiveram papel de destaque no cristianismo primitivo logo depois da morte de Cristo. A associação da família com a dinastia de David explicaria o respeito especial conferido a Tiago e outros membros da família de Jesus.
Esse meio familiar também seria uma das chaves para entender as histórias sobre fugas e deslocamentos do menino Jesus e de seus pais nos Evangelhos, argumenta ela. Tais histórias refletiriam a paranoia e as perseguições promovidas pelo rei Herodes, o Grande (72 a.C.-4 a.C.).
Oriundo de uma família de idumeus (povo do sul da Palestina convertido ao judaísmo), Herodes não tinha grande legitimidade entre seus súditos judeus e foi ficando cada vez mais brutal e conspiracionista conforme seu reinado se aproximava do fim. Tanto ele quanto seu filho e sucessor Arquelau (23 a.C.-18 d.C.) teriam motivos para perseguir quem se considerasse membro da linhagem de David e para reprimir revoltosos brutalmente. Isso explicaria as histórias sobre a família de Jesus buscando refúgio no Egito (onde havia uma grande comunidade judaica) e indo para a Galileia para escapar da influência de Arquelau.
No fim das contas, o que o livro faz é trazer essa visão contextual, já que não é possível detalhar incidentes específicos da infância de Jesus por falta de fontes que abordem essa fase de sua vida.
Taylor especula que a tradição familiar ligada à dinastia davídica e as experiências de refugiado e imigrante numa Galileia em ebulição podem ter influenciado a pregação que ele iniciou depois de adulto, como resposta não violenta à desigualdade e opressão trazida pela dinastia herodiana e por Roma.
Fonte ==> Folha SP