Piracicaba, interior de São Paulo. Foi ali que Carolina cresceu, viveu com a mãe e a avó, e aprendeu, desde cedo, que o câncer era um visitante frequente em sua casa. Aos 27 anos, ela tomou uma decisão radical, porém consciente: realizar uma mastectomia bilateral preventiva. O motivo? A confirmação de que é portadora da síndrome de Li-Fraumeni (LFS), condição genética rara que afeta o gene TP53, responsável por proteger o corpo contra o desenvolvimento de tumores.
A doença não é apenas uma estatística distante para Carolina. Sua mãe, Graziela Karine Maronese Pimentel, enfrentou dois cânceres de mama —um deles altamente agressivo. Sua avó, Maria Amélia Mora Maronese, foi teve dois sarcomas peritoneais, também de natureza agressiva, que resultaram em uma bolsa de ileostomia. Ambas também são portadoras da síndrome. “Cresci vendo minha mãe e minha avó lutando pela vida. Vi as dores, os tratamentos, a coragem. E entendi que, com o diagnóstico em mãos, minha escolha era entre agir ou esperar que a história se repetisse comigo”, diz.
A importância do teste genético
A virada na vida de Carolina começou quando um teste genético solicitado para a mãe dela confirmou a mutação no gene TP53. Como a síndrome é hereditária, ela tinha 50% de chance de também ser portadora — e o exame confirmou. A partir daí, começou um longo caminho de encaminhamentos médicos, exames, autorizações e decisões difíceis.
“Tive acesso a tudo graças ao plano de saúde. Reconheço que sou privilegiada, mas isso também me dá uma missão: falar sobre o que precisa mudar. No SUS (Sistema Único de Saúde), o acesso à prevenção ainda é muito limitado, principalmente quando falamos de uma cirurgia preventiva. É preciso lutar para que a prevenção também seja considerada tratamento.”
Entre o medo e a liberdade
Receber o diagnóstico foi, segundo ela, como ver o chão desaparecer. “É como carregar um medo invisível. Eu me vi jovem, aparentemente saudável, tendo que lidar com uma condição que me dava quase 90% de chance de desenvolver câncer ao longo da vida. Isso muda tudo.” A decisão pela cirurgia, recomendada por toda sua equipe médica, não veio sem receios. O medo do câncer falou mais alto, mas a ideia de perder partes do corpo saudáveis abalou profundamente sua autoestima e percepção de feminilidade.
“Foi duro me despedir de uma parte do meu corpo que, culturalmente, é tida como símbolo de feminilidade. O espelho virou um lugar difícil por um tempo. Mas entendi que ser mulher vai muito além disso. Está na minha história, no meu olhar, na força com que enfrento o que a vida traz”, relata.
Carolina passou por uma mastectomia bilateral com preservação da pele e reconstrução imediata com próteses de silicone de 380 ml. A cirurgia, porém, teve complicações: uma necrose na aréola esquerda exigiu um procedimento para sua retirada. A cicatrização foi lenta, dolorosa e emocionalmente desgastante. “Tive dúvidas se fiz a escolha certa. Perguntei ao meu médico, e ele me disse: ‘Com o seu diagnóstico, não era uma questão de se você teria câncer, mas quando’. Aquilo me deu paz.”
Uma nova forma de viver
Desde a cirurgia, a rotina de Carolina mudou drasticamente. “As prioridades mudam, o tempo ganha outro valor. Vivo mais o agora, sem tantos planos longos. E aprendi que é possível contemplar a beleza mesmo na dor. Meu sogro, por exemplo, que faleceu de câncer, me ensinou isso. Mesmo nos últimos dias de vida, ele fazia questão de ver o pôr do sol todos os dias. Isso me marcou para sempre.”
Um projeto nascido das cicatrizes
Foi durante esse processo —físico e emocional— que nasceu o “Inteiras”, projeto idealizado por Carolina para acolher outras pessoas diagnosticadas com a síndrome de Li-Fraumeni. O objetivo é claro: compartilhar informação, dar visibilidade à condição e romper com o silêncio que muitas vezes envolve esse tipo de escolha.
“Eu procurei relatos reais antes da cirurgia e quase não encontrei. Ninguém falava das complicações, da aparência, da dor. Com o ‘Inteiras’, quero que outras mulheres se sintam preparadas, acolhidas, menos sozinhas. As cicatrizes contam uma história de escolha pela vida, e há beleza nisso.”
O nome do projeto, segundo ela, reflete seu momento atual. “Mesmo sem parte do corpo, me sinto inteira. E quero que outras mulheres saibam que é possível se reconstruir não só fisicamente, mas por inteiro.”
Uma mensagem para quem enfrenta o câncer na família
“Busquem informação. Não deixem o medo calar conversas difíceis. O teste genético pode salvar vidas, mas ainda é visto como tabu. Precisamos mudar isso. E, acima de tudo, ninguém precisa passar por isso sozinho. Compartilhar é parte do tratamento. O diagnóstico não define quem você é, e viver com coragem é um ato de amor.”
Carolina diz que transformou a dor da incerteza em ação concreta. E com o “Inteiras”, ela segue deixando sua marca: a de que mesmo partidas, mesmo cicatrizadas, as mulheres que enfrentam o câncer podem —e devem— se sentir inteiras.
O que é Li-Fraumeni?
A síndrome de Li-Fraumeni é uma condição genética rara e grave, causada por uma mutação no gene TP53, conhecido como “guardião do genoma” por seu papel fundamental na proteção contra o desenvolvimento de tumores. Essa mutação compromete os mecanismos naturais de reparo e morte celular, elevando significativamente o risco de diversos tipos de câncer ao longo da vida, inclusive na infância.
Segundo Janaína Pontes Batista Cassoli, oncogeneticista do Hospital Israelita Albert Einstein, “os principais cânceres associados à síndrome são o de mama em mulheres jovens —muitas vezes antes da menopausa — além de leucemias, sarcomas ósseos e de partes moles, tumores do sistema nervoso central e de glândulas adrenais, entre outros”. A especialista explica ainda que o diagnóstico é feito por meio de um teste genético germinativo, a partir de amostras de sangue ou saliva, e é indicado em casos com forte histórico familiar de tumores.
Entre as estratégias de prevenção para mulheres com a síndrome, destaca-se a mastectomia redutora de risco, uma cirurgia que pode diminuir em até 95% a chance de desenvolver câncer de mama. “A decisão é individualizada e discutida com base no desejo reprodutivo da paciente, seu entendimento sobre os riscos e o momento adequado da vida”, afirma Janaína.
Maria Isabel Achatz, oncogeneticista e coordenadora da Unidade de Oncogenética do Hospital Sírio-Libanês, reforça que o risco de câncer de mama em mulheres com a síndrome pode chegar a quase 80%, e destaca que o acompanhamento dessas pacientes deve seguir o chamado protocolo de Toronto — que inclui exames como ressonância magnética de corpo inteiro e do crânio de forma anual, além de consultas frequentes com especialistas e aconselhamento genético. “Mais do que uma recomendação, a cirurgia profilática [preventiva/de redução de riscos] é uma possibilidade que deve ser cuidadosamente discutida com a paciente”, explica.
Fonte ==> Folha SP