A Fuvest inaugura neste ano uma lista de leitura obrigatórias só com autoras mulheres, a maioria delas aparecendo pela primeira vez na prova, que seleciona estudantes para a USP. Embora tanta novidade possa assustar, o fato de haver menos resumos, vídeos e outros materiais de referência consolidados sobre os livros tem sido usado pelos colégios para promover debates novos.
A própria ideia de quais são os “clássicos”, quem os define ou por que é importante lê-los virou tema de aulas. “Uma lista com autoras não canônicas abriu a possibilidade de discutir o que é cânone, de como a gente pensa sobre a literatura, o que importa nela”, diz Ana Bergamin, coordenadora do ensino médio no Colégio Vera Cruz, na zona oeste de São Paulo.
Folha Estudantes
Um guia semanal em 6 edições para quem precisa planejar os estudos até o Enem.
Segundo ela, os adolescentes se interessam muito por esse tipo de debate, o que não significa que estão gostando de todas as obras. Porém, é natural que nem todos os livros façam sucesso entre os estudantes. “Desde que eu prestei vestibular era assim; algumas obras eram difíceis demais para aquela fase da vida”, conta.
A opção por uma lista de obras 100% escritas por mulheres foi anunciada pela universidade em novembro de 2023. Pelo plano, durante três anos (nas edições de 2026, 2027 e 2028 do vestibular), a seleção terá apenas autoras, e até Machado de Assis, recorrente nas leituras obrigatórias, ficará de fora.
A partir deste vestibular, os candidatos terão que ler obras das seguintes autoras: Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Nas escolas, a forma de estudar não muda completamente apenas por serem obras de mulheres. O que muda, na verdade, é o fato de não existirem tantos materiais como resumos e vídeos de aulas disponíveis na internet. Tampouco há questões de anos anteriores da própria Fuvest sobre os livros. “Não tem atalhos: é preciso ler. Nas aulas, estamos num processo de análise literária e discussão de um jeito menos contaminado”, afirma a coordenadora.
Leonardo Dos Santos Buzatto, professor do Liceu de Artes e Ofícios, já dá aulas de literatura há 20 anos e confessa que ficou assustado quando viu a lista pela primeira vez, por ter várias obras que não conhecia ou que não tinha estudado. Portanto, antes de preparar os alunos, precisou se preparar. Como a lista foi divulgada com dois anos de antecedência, houve tempo para isso.
“Já li cada uma das obras mais de três vezes —e releio vários trechos. Tentei procurar referências e estudos sobre os livros, entender a época histórica da publicação, mas foi sobretudo a partir da leitura das próprias obras que fui encontrando as qualidades literárias”, explica.
Para o professor, também é importante pensar sobre a lista em conjunto. “A gente começa a entender o porquê dessa escolha de uma lista só de mulheres, o caminho das pedras que elas tiveram que percorrer. Até Raquel de Queiroz entrar na Associação Brasileira de Literatura, quantas outras não foram apagadas?”, questiona.
O professor ressalta que, embora tratem de temas das mulheres, as obras não se resumem a assuntos tachados como femininos. “Em ‘Nebulosas’ [de Narcisa Amália], há poesia de amor, sobre abolição, questionamentos sobre a liberdade. É uma obra profunda”, exemplifica. Para trabalhar esse livro, o professor organizou com as turmas um sarau só com as poesias da obra.
Os representantes dos colégios ressaltam, contudo, que seu currículo de literatura não se resume à lista da Fuvest. Assim, autores homens consagrados como Machado de Assis continuam sendo lidos e estudados pelas turmas.
Por ser uma espécie de “farol” para outros vestibulares e mesmo para o ensino médio, a lista deve começar a criar novas referências. “Vejo como um compromisso social da Fuvest; estão chacoalhando o barco, porque era preciso. E quem só decorava resumo vai ter que realmente pensar”, afirma Marcel Costa, fundador do cursinho pré-vestibular IntegralMind.
Costa defende que, além de ler as obras, é preciso sempre pensar nelas dentro do seu contexto. “A escolas literárias refletem movimentos sociais, a cultura de um tempo; são como fotos de uma sociedade. Agora, temos fotos tiradas por mulheres”, diz.
Ele destaca ainda que incluir autoras de Angola e Moçambique, além de Brasil e Portugal, traz uma dimensão importante para a prova deste ano; um olhar para a lusofonia de forma mais ampla.
“A lista cria uma representatividade africana. Ela está dizendo aos alunos que, se é língua portuguesa, tem que ser estudado. Tem uma visão global do idioma”, afirma.
LIVROS DA FUVEST 2026
- “Opúsculo Humanitário” (1853) – Nísia Floresta
- “Nebulosas” (1872) – Narcisa Amália
- “Memórias de Martha” (1899) – Julia Lopes de Almeida
- “Caminho de Pedras” (1937) – Rachel de Queiroz
- “O Cristo Cigano” (1961) – Sophia de Mello Breyner Andresen
- “As Meninas” (1973) – Lygia Fagundes Telles
- “Balada de Amor ao Vento” (1990) – Paulina Chiziane
- “Canção para Ninar Menino Grande” (2018) – Conceição Evaristo
- “A Visão das Plantas” (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
A Folha oferece assinatura gratuita para estudantes que se inscreverem no Enem; clique aqui para saber mais.
Fonte ==> Folha SP