Nas fotografias de Luiz Braga, Belém é uma cidade de cores saturadas e paisagens fulgurantes. Dos bares erguidos com ripas de madeira às casas de janelas sempre abertas, passando pelas mãos que colhem o açaí, tudo na capital paraense reluz de um modo diferente.
É como se Braga tivesse transformado a câmera num refletor, iluminando pessoas e cenários para dissipar o obscurantismo a respeito da região amazônica. Não por acaso, cores e luzes são elementos centrais na exposição “Arquipélago Imaginário”, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Com 250 obras divididas em nove núcleos expositivos, a mostra marca os 50 anos de carreira de um dos fotógrafos mais importantes do país.
Nascido em Belém, ele se notabilizou por imagens que irradiam tanta luz que parecem esconder em seu interior pequenas lâmpadas de néon. Braga também é célebre por voltar as lentes para a cultura cabocla de sua terra natal, transformando situações cotidianas em matéria-prima para obras de arte.
As imagens do fotógrafo são como buracos na fechadura que convidam o público a espiar a vida íntima de seus conterrâneos. Evidência disso é a presença de portas e janelas abertas em muitas de suas fotografias, a começar pela primeira imagem da exposição. Na obra, uma jovem está do lado de fora de uma casa, olhando pela janela o que se passa dentro do imóvel.
Esse trabalho sintetiza de uma só vez a proposta estética de Braga e o objetivo da própria exposição. “Em todos os núcleos, há esse lugar da intimidade, porque o olhar dele é voltado ao micro, para o pequeno e para o detalhe”, diz Bitu Cassundé, que assina a curadoria da mostra.
Esses detalhes estão em fotografias que exibem objetos prosaicos, como ventiladores, ferros de passar roupas e vasos de flores. São utensílios que povoam a memória afetiva de Braga e aumentam a atmosfera intimista dos ambientes retratados.
A expografia também convida o público à observação. Os núcleos são separados por paredes com aberturas que lembram janelas. Desse modo, as pessoas conseguem enxergar o que se passa em diferentes espaços da mostra. “Essas fendas apontam para uma dimensão do espiar que está presente nas fotografias. É um olhar ligeiro, caloroso e afetivo.”
Nenhum elemento da expografia parece ter sido escolhido ao acaso. As paredes, por exemplo, foram pintadas com cores que Braga selecionou levando em conta a paleta cromática de suas fotografias. “Para mim, trata-se de uma ópera visual”, diz o fotógrafo.
Essa sinfonia imagética é formada por obras de tons radiantes, mas também por fotografias em preto e branco —uma produção de sua autoria que é menos conhecida. Fazem parte dessa fase imagens que evidenciam a arquitetura do Pará, com casas de palafita e edifícios neoclássicos. Vemos também o contato da população com o sagrado em obras que retratam o Círio de Nazaré, a principal celebração religiosa do estado.
“O preto e branco são o alicerce da minha fotografia, porque tudo se inicia por aí. Os sujeitos são os mesmos e a vida cotidiana é a mesma das imagens coloridas. O que muda é que tive o privilégio e a bênção de descobrir as cores e de me aprofundar nelas”, ele diz.
O marco dessa descoberta aconteceu em meados dos anos 1980, quando o fotógrafo decidiu registrar uma mulher e um menino de mãos dadas observando as ondas do mar. “Fiz a foto e levei ao estúdio. Quando terminei de revelar, vi que estava tudo errado”, conta.
O céu tinha um tom estranhamento violáceo e o chão irradiava um verde quase radioativo. Por acidente, ele concebeu uma paisagem de cores surrealistas. Seis meses depois, decidiu revisitar a própria produção e se surpreendeu quando viu a imagem de novo. “Caramba, não é que ela tinha ficado legal?”, lembra.
Braga rompeu então com a fotografia clássica para apostar na subversão cromática. A partir daí, sua carreira deu uma guinada. “Comecei muito careta, convencional e preso a dogmas. Fui amadurecendo e me desfazendo da ideia de que o foco precisa ser bonitinho e a luz deve ser corrigida.”
Em 2004, deu uma nova guinada e começou a registrar a rotina na região amazônica com uma câmera para fotografar no escuro. Mas decidiu fazer mais uma subversão. Usou a visão noturna do equipamento para tirar fotos durante o dia. O resultado é a série “Night Vision”, um dos destaques da exposição no IMS.
O truque deu às imagens uma aparência holográfica. Olhar para as fotos é como estar dentro de uma vertigem ou diante de um devaneio. Embora seja o nosso mundo, é uma paisagem de aspecto quase celestial. “Quis construir um território que tanto na mitologia indígena quanto na ocidental representa uma terra sem males”, diz. “Esse mundo tem um encanto e uma surrealidade que mostram que não é aqui. É o Éden.”
Além de atribuir um caráter feérico aos trabalhos, a visão noturna o ajudou a mostrar outra perspectiva a respeito da região amazônica. “Eu rejeito aqueles estereótipos sobre a Amazônia, do Eldorado, do inferno verde e dos animais selvagens. Nunca quis isso. Fiquei muito feliz por ter conseguido apresentar uma floresta subvertida.”
Braga precisou inventar um Éden em “Night Vision” porque a realidade de Belém estava longe de ser idílica. “A cidade foi ficando áspera do ponto de vista visual e humano”, diz. Em razão do aumento da violência, as pessoas reagiam com desconfiança quando ele as fotografava. O próprio artista, aliás, já foi assaltado enquanto trabalhava. “Fotografia e medo não rimam. Jamais seria um fotógrafo de guerra.”
A arquitetura também se transformou, dando espaço a prédios altos e espelhados. “A cidade ficou com cara de nada”, diz. “As cores do meu trabalho estão na cidade ribeirinha, na cidade cabocla. As fachadas e as roupas nesses espaços falam muito mais ao meu coração do que um arranha-céu com pele de vidro.”
Braga decidiu então iniciar um projeto fotográfico na Ilha de Marajó, onde conseguiu recuperar um pouco da Belém de sua juventude. Ele diz que a incursão ao território marajoara ensinou a importância de ouvir o que a população local tem a dizer. “Riqueza para mim são as histórias. É ser recebido pela dona Maroca e ficar conversando fiado. É tomar o melhor tacacá do mundo. Isso não tem preço”, diz. “Muita gente até diz que eu não sei ganhar dinheiro. Na realidade, prefiro saber fotografar.”
Fonte ==> Folha SP