“Eu conto histórias reais de pessoas reais”.
Não tenho certeza de que José Junior realmente disse essa frase, quando entrevistei o fundador de uma das instituições mais sólidas e eficientes do Brasil, o AfroReggae. Mas, depois de maratonar as três temporadas da série “Arcanjo Renegado“, que ele escreve e produz, foi o que ecoou na minha cabeça: são histórias reais.
Eu já tinha ouvido falar na série, que estreou em 2020. Se fizesse ideia da transformação que ela ia operar sobre mim, teria assistido antes. É entretenimento de primeira qualidade, um dos melhores que assisti em muito tempo, muito bem roteirizado, dirigido, escalado. E é muito mais do que isso: embora se afaste do didatismo que tem permeado muita coisa na literatura e no audiovisual, “Arcanjo Renegado” merecia estar na bibliografia de ensino médio e universidades, em todas as disciplinas que exigem entender melhor a sociedade em que vivemos.
No ano do vestibular, assisti ao filme “Cronicamente Inviável” e até hoje penso em como as discussões a partir dele moldaram minha visão sobre o que eu aprendia nas aulas e nos livros. Alguns aprendizados vêm da realidade e da arte. Ou não vêm.
A produtora AfroReggae é um dos diversos projetos da ONG que Junior criou há mais de 30 anos. Desde 2016, ela colocou no ar, em parceria com a Multishow e o Globoplay, séries como “Betinho – No Fio da Navalha”, “A Divisão”, “O Jogo que mudou a história”, além de “Arcanjo Renegado”, confirmado até a sexta temporada.
No drama, que tem a violência policial e os bastidores da política carioca como protagonistas, o Sargento Mikhael (Marcello Melo Jr.), do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro), está marcado para morrer por diferentes vertentes do crime organizado.
Morte sem Tabu: Como surgiu a ideia do “Arcanjo”?
José Junior: Em 2013, fui informado por autoridades que eu figurava na lista de pessoas “marcadas para morrer”. Minha mulher na época estava na reta final da gravidez da minha filha mais nova. Eu nunca tive medo de morrer, mas tenho medo pelos meus filhos. Comecei a andar com escolta de policiais do Bope e da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro (Core), 24 horas por dia. No dia do nascimento da minha filha, a maternidade estava tomada por policiais. Um tempo depois, meu pai morreu e eu cheguei ao cemitério escoltado por um grande efetivo também.
Passei anos ouvindo histórias e conhecendo mais de perto as vidas daquelas pessoas que garantiram a minha segurança, inclusive do homem que inspirou Afonso, pai do Mikhael, em “Arcanjo”. Ele está vivo. Eu faço muito isto: mato os personagens que, na vida real, estão vivos, e ressuscito, na ficção, aqueles que já estão mortos.
Durante alguns anos, eu vivi uma guerra. E não é fácil estar numa guerra. Um dia, em 2014, fui a uma missa de São Miguel Arcanjo, o santo guerreiro. O padre benzia as pessoas, com umas gotas de água que pegava em um balde. Quando chegou a minha vez, ele jogou o balde inteiro sobre a minha cabeça. Todo mundo dizia que eu ia morrer. O padre disse que eu ia viver.
Acredito muito em espiritualidade. No trajeto entre a igreja e o lugar onde eu tinha o compromisso seguinte naquele dia, escrevi o argumento do “Arcanjo”, no aplicativo de notas do celular.
Morte sem Tabu: O Mikhael seria, então, seu alter ego?
José Junior: Dois personagens do “Arcanjo” têm características que são inspiradas em mim: o Mikhael e o Ronaldo Leitão (Álamo Falcão). Eu até empresto as roupas do meu guarda-roupa para o Ronaldo usar. Eu e ele somos muito parecidos, também comecei denunciando arbitrariedades da polícia em um jornal. O primeiro projeto do AfroReggae foi um jornal. Mas, claro, há muitas diferenças também, eu não sou gay, por exemplo, nem sou maconheiro, algo que é muito forte na vida dele.
Morte sem Tabu: Na série, você retrata bem a violência e a letalidade da polícia carioca. Mas também mostra como os comandos de operações vêm de cima, dos governantes. Como você vê a polícia?
José Junior: Até 2004, eu era um partidário contra a polícia, achava que ela era um mal, que só queria esculachar o povo da favela. Depois, fui percebendo que a polícia também é vítima do sistema. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata, mas também a que mais morre. Quem toma as decisões está acima. Nós temos uma polícia que chamam de despreparada, mas ela, na verdade, é sem infraestrutura, sem salários dignos, com a autoestima subjugada o tempo todo. Conheço policiais incríveis que fazem um bom trabalho.
Morte sem Tabu: Em agosto de 2013, houve uma série de atentados graves contra a sede do AfroReggae, no Complexo do Alemão. Na época, o titular da Delegacia de Combate às Drogas, Márcio Mendonça Dubugras, afirmou que a ordem veio de lideranças do tráfico de drogas, em razão da prisão de um pastor que você havia denunciado. Quando você criou a primeira temporada, já tinha a ideia de trazer um Bispo como antagonista para a série? Ele é inspirado naquele pastor?
José Junior: Quando escrevi a primeira temporada, eu nem sabia se haveria uma segunda. Mas, quando a série foi renovada, entendi que precisava de um novo antagonista hipócrita. O Bispo Cristóvão é inspirado em pseudolíderes que utilizam o tripé perverso de misturar religião, política e crime organizado. Era para ser um grande personagem, mas o Thelmo Fernandes, que é um gênio, fez o Bispo ficar gigante. Tanto que cheguei a escrever a cena da sua morte, mas desisti de gravar.
Morte sem Tabu: Como a produtora AfroReggae Audiovisual incorpora os princípios do AfroReggae?
José Junior: A produtora faz parte do legado do Grupo Cultural AfroReggae. Ela é um braço da ONG, em que todos os projetos existem para que arte e cultura sejam meios de transformação social, tirando os moradores das favelas da criminalidade, da violência, do tráfico.
Nas nossas séries e filmes, os elencos são formados majoritariamente por atores e atrizes negros, boa parte deles como protagonistas e personagens de destaque. Isso acontece no “Arcanjo”, acontece em “A divisão”, em “O jogo que mudou a história” Também há sempre atores egressos do sistema prisional – uma das importantes ações do AfroReggae é a ressocialização de pessoas por meio da inserção no mercado de trabalho, pelo “Projeto Segunda Chance”.
O que me convenceu a realizar a nossa primeira série documental para o Globoplay sobre o Belo, que, para mim, é um dos maiores artistas do Brasil, foi ele ter sido preso três vezes e ter dado tantas voltas por cima.
Toda série que eu faço tem recorte social, recorte racial. A Maíra (Cris Vianna), presidente da Assembleia Legislativa na terceira temporada, por exemplo, é uma semente que eu planto para ver uma mulher preta nesse cargo um dia. Ela não está ali por acaso, ou só para dar o papel a uma mulher negra.
Morte sem Tabu: “Arcanjo Renegado” é uma série de personagens complexos, que desafiam a ideia de mocinho ou vilão absoluto o tempo todo. Ainda assim, é uma série em que os bandidos se dão mal, sejam eles traficantes com fuzil na mão ou políticos corruptos. É uma preocupação humanizar todo mundo?
José Junior: Eu estou sempre fazendo uma autocrítica. No “Arcanjo”, os traficantes, milicianos, pseudo líderes religiosos e políticos são os antagonistas. Em “O Jogo que mudou a história”, eu mostro o outro lado, faço todo mundo torcer pelo bandido. Depois de pesar muito na violência policial com essas duas séries, eu fui tratar de outro tipo de violência: a fome, em “Betinho”. Uma série vai puxando a outra, vai respondendo a outra.
Agora nós estamos trabalhando em projetos que também mostram outras faces dos mesmos problemas. No filme “Na Linha de Fogo”, primeiro produto da parceria entre Globoplay e Disney, a gente vai mostrar parte da realidade da Core, e o impacto da violência sobre as vidas dos policiais e das pessoas comuns que moram nas favelas.
Nós ouvimos, há décadas, que o verdadeiro traficante não mora na favela, que ele frequenta as altas esferas do poder e da sociedade. Na quarta temporada do “Arcanjo”, vamos mostrar um personagem que representa esse criminoso.
Morte sem Tabu: O que mais a gente pode esperar para a quarta temporada?
José Junior: A terceira temporada encerrou um ciclo. [Há spoilers a partir daqui] Com o fim da Federação do Crime, teremos outro grande inimigo. O Bispo também está exposto. E a série vai mostrar, agora, uma participação muito ativa da Polícia Federal, em razão da internacionalização dos crimes. Além disso, uma nova personagem entra para fazer o Mikhael se lembrar do romance com a Luciana (Danni Suzuki), que talvez tenha sido a única vez em que ele se permitiu amar. A morte da Luciana é um dos eventos da série que mais irritaram os espectadores, até hoje me cobram por isso. Mas era necessário. Caso contrário, o Mikhael estaria até hoje tomando banho de cachoeira em Miracema (risos).
Morte sem Tabu: A trama de “Arcanjo” é totalmente ligada ao Rio de Janeiro. O Rio vai ter jeito na série? O Rio tem jeito?
José Junior: O Rio de Janeiro é muito peculiar, para o bem e para o mal. E tudo que acontece no Rio tem muita ressonância nacional e até internacional, nada que ocorre aqui passa despercebido. Eu também não teria a mesma legitimidade e acesso para construir uma história como a do “Arcanjo” em outro lugar.
Acho que já tivemos governos e iniciativas no Rio em que a gente conseguiu sonhar. Para dar certo, é muito importante que haja um alinhamento institucional entre os entes federativos, um esforço conjunto entre Município, Estado e União. No que depender de mim, sempre vou torcer e ajudar para dar certo. Mas, na série, temos que esperar. Vamos chegar até a sexta temporada. Quem sabe mais.
Fonte ==> Folha SP