Maria Lira e Julia Isidrez expõem animais híbridos – 24/04/2025 – Ilustrada

A imagem mostra uma exposição de cerâmica em um ambiente com paredes de cor terracota. No primeiro plano, há várias peças de cerâmica em diferentes formas e tamanhos, incluindo vasos e esculturas. Ao fundo, estão penduradas quatro obras emolduradas, com desenhos e padrões em tons terrosos, além de duas pequenas obras em molduras menores. A iluminação é suave, destacando as texturas das peças.

Das esculturas de cerâmica parecem se levantar bichos com um toque de fantasia, figuras míticas, personagens de desenho animado. Nas paredes terracota, pinturas em tons terrosos, uma arte quase rupestre entre máscaras com feições atormentadas.

São todas obras de Julia Isidrez e Maria Lira Marques, que passaram uma temporada em Nova York, exposta na feira Independent 20th Century, com expografia de Lucas Jimeno, e agora estão à vista na galeria Gomide&Co, em São Paulo.

Mais de 2.000 quilômetros separam as duas artistas, unidas pela mesma visão de mundo encantada. Marques é de Araçuaí, cidade no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, uma das regiões mais carentes do país. Já Isidrez vem de Itá, conhecida como “capital das cerâmicas”, região do Chaco paraguaio com forte influência de povos originários.

Elas não se conheciam até as vésperas da abertura da exposição na capital paulista —eufóricas, se cumprimentaram pela primeira vez na galeria, à vista dos jornalistas que acompanhavam o evento, em março.

Ambas se inspiram na natureza, mas criam conforme a imaginação —Isidrez cria híbridos de cerâmica a partir de formas arredondadas e densas, enquanto Marques pinta em planos chapados, sem profundidade.

Os seres são misteriosos e cativantes, monstros que não despertam medo, mas afeto. Em “Mundo de Julia Forma de Pera”, da paraguaia, uma das figuras se parece com um dinossauro, com escamas de um tricerátops. Já “Oveja Poncheja” tem espinhos que surgem como uma mão aberta pronta para fechar o punho. Em um dos lados, está um rosto ovino e patas.

Mesmo os animais mais “normais” de Isidrez têm seu toque autoral –”Anfora Yacaré” é estampado por lagartos em alto-relevo, mas com um par de patas a mais que o normal. Existem ainda os mais extraordinários, como “Grito de Libertad”, figuras zoomorfa com sua imensa boca escancarada.

Enquanto as figuras da paraguaia já foram consideradas como “fofas” por críticos de arte, as máscaras de cerâmica de Marques têm um peso diferente.

São faces alongadas de pessoas com ascendência africana e indígena —”tenho um pouco dos dois”, diz a artista—, com bocas entreabertas e expressões de desespero. Lágrimas escorrem dos olhos, voltados para baixo.

A artista, entretanto, se dedica à pintura após uma tendinite. As telas são feitas com pigmentos naturais e os traços simplificados ganham a textura da terra, remetendo às obras milenares das grutas da Serra da Capivara, no sertão piauiense.

“A natureza é riquíssima. Basta a gente observar. Aqui no Vale do Jequitinhonha, o pessoal pinta a cerâmica com as cores da terra. Quando vi os trabalhos da dona Izabel [Mendes da Cunha, criadora das bonecas-moringa da região], comecei a pesquisar também as terras, a coletar e colocar em vidros. Eu tenho terras da cor mais branca, que chega a doer a vista, vários tons de amarelo, roxo, goiaba”, diz a mineira.

Ela trabalha desde os anos 1990 no que chama de “Meus Bichos do Sertão”. “Meus porque são da minha cabeça. Eles vivem na minha mente”, afirma. Alguns parecem humanos, mas com formas distorcidas, como extremidades alongadas, como as de um sapo. À direita, na mesma tela, está uma mescla de pássaro e peixe, com antenas de um extraterrestre, um corpo roliço e barbatanas.

Fora as máscaras, na sua escultura chamam a atenção figuras e personagens de seu cotidiano, feitas em miniatura. São denúncias da desigualdade e opressão vivenciadas na sua região.

Tanto Isidrez quanto Marques aprenderam a moldar o barro com suas mães, que repassaram a tradição. As técnicas centenárias se devem à influência indígena –notadamente dos povos guarani, na região do Chaco– e africana, no Vale do Jequitinhonha.

“Minha bisavó fazia cântaros ou, em guarani, cambuquí. Dela foi para minha avó, até que chegou à minha mãe. Nessa época, já existiam as geladeiras e garrafas térmicas para ter água fresca”, diz Isidrez. “Então minha mãe passou a fazer da cerâmica uma obra de arte.”

Hoje, Araçuaí e Itá são conhecidas como polos de arte no comércio local. Lá, o barro é abundante: ainda hoje, Isidrez busca sua matéria-prima a três quilômetros de sua casa.

A ceramista começou a moldar o barro com a mãe, Juana Marta Rodas. A dupla foi descoberta pelo arquiteto Carlos Colombino e, quando Isidrez tinha 17 anos, venceram o prêmio holandês Prince Claus por uma de suas obras. “Foi [Colombino] quem disse à minha mãe: ‘Juana Marta, você não é artesã, é artista'”, diz, emocionada.

Décadas depois, Isidrez expôs na Bienal de Veneza do ano passado, sob o tema “Estrangeiros por Toda a Parte”, com curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp. A artista levou peças de sua mãe, assim como obras suas feitas a partir dos desenhos de Juana Marta.

A paraguaia fundou, em sua cidade, a Casa Museu Juana Marta Rodas, onde dá aulas de cerâmica. “Sou uma pessoa quase de terceira idade e não tenho filhos, mas quero deixar uma herança de arte, às pessoas que queiram aprender”, conta.

Marques também se destaca na vida cultural de sua comunidade. Fundadora do Museu de Araçuaí, a mineira despontou no cenário devido ao Coral Trovadores do Vale, que surgiu a partir da movimentação de Francisco Van Der Poel, o Frei Chico, padre holandês que se instalou na região e dedicou boa parte de sua vida ao registro de sua cultura.

A dupla gravou mais de 250 fitas com canções típicas do vale, reproduzidas pelo coral até hoje. Em fevereiro, Marques se apresentou com o grupo na Chapada Diamantina, no centro da Bahia, cantando o repertório que narra a vivência de seu povo.

Tanto Araçuaí quanto Itá se transformaram em centros onde a cultura local, centenária, se reinventa ao longo das décadas, a partir da atuação decisiva de Isidrez e Marques e da repercussão de suas obras.

Marques teve a primeira antologia de suas obras publicada, no ano passado, pela Galeria Gomide&Co. O livro, além de retrospectiva, é uma biografia que ilumina o mundo interior da artista. Já Isidrez, com sua tradição de cerâmica pré-colombiana, põe a arte paraguaia no mapa global. Depois de São Paulo, suas obras participaram da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, e estão previstas para serem expostas em San Francisco e Londres.



Fonte ==> Folha SP

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