Em 1967, a Força Aérea Brasileira realizou uma expedição na serra do Cachimbo, no Pará, e convidou o cacique Raoni Mẽtyktire.
O pajé revela, quase 60 anos depois, que foi enganado. Disseram-lhe à época que buscavam ajuda para o caso de encontrarem outros indígenas. Muito depois, porém, ele saberia que o objetivo real daqueles “militares ruins de mato”, como descreve, era usá-lo para caçar o guerrilheiro comunista Ernesto Che Guevara (1928-1967).
Essa e outras histórias são narradas por Raoni, uma das lideranças mais importantes do mundo no último século, no livro “Memórias do Cacique” (Companhia das Letras). A obra chega às livrarias nesta semana —um evento de lançamento acontecerá após ele se recuperar de uma doença.
Os relatos fazem um registro etnográfico e cosmológico da história ancestral dos mẽbêngôkre kayapós e do subgrupo mẽtyktire, ao qual ele pertence: o mito da criação, os lugares por onde peregrinaram, guerras, a luta pela demarcação dos territórios e a relação com os “kubẽ” (não indígenas).
A obra passa pela trajetória do cacique desde sua infância, lembrando que Raoni brincava de um jogo de bola quando criança, e pelo processo para se tornar pajé.
Também relata episódios da sua liderança de influência nacional e internacional, como a luta pelo Parque do Xingu e contra a usina de Belo Monte, a relação com personalidades como o presidente Lula (PT), os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, José Sarney e Fernando Collor, e com figuras como o cantor Sting, o rei Leopoldo 3º (da Bélgica) e o papa João Paulo 2º.
O texto parte de entrevistas com o cacique, em língua nativa, conduzidas por seus netos Paimu Muapep Trumai Txukarramãe, Patxon Mẽtyktire e Beptuk Metuktire.
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Eles e o antropólogo Fernando Niemeyer traduzem os relatos para o português e adaptam para a narração em primeira pessoa, preservando traços do modo de falar e da tradição oral, com repetições e raciocínios encerrados em frases como “era assim que vivíamos”.
Em entrevista à Folha mediada por Patxon e o editor do livro, Ricardo Teperman, o cacique diz que muitos já o procuraram para escrever essas memórias, mas pela primeira vez a empreitada, enfim, foi adiante.
“Sonhei com isso”, diz. “Muitos me visitam e me orientam para fazer este meu trabalho. Essas visitas são espirituais.”
Há registros de cantos, na língua mẽbêngôkre e em português, e detalhes culturais como técnicas de caça, culinária, cura, rituais, encantamentos, danças, festas e adornos, bem como sobre a função cerimonial do choro.
Entre as histórias, o cacique relata, com ironia e irritação, a expedição na serra do Cachimbo. “Bem mais tarde vim a saber que esses militares estavam indo procurar pelo guerrilheiro Che Guevara”, conta.
A parceria com lideranças indígenas era comum para auxiliar em caso de contato com outros grupos durante as missões —neste caso, os krãjakàràs. Raoni narra que os militares eram totalmente despreparados, com exceção do cozinheiro. Alguns dormiam em cima de formigueiros, e um alemão quase se afogou.
O indígena ironiza o racionamento de comida no meio de uma floresta abundante em animais. “Por que isso?” Por mais de uma vez, ele caça para o grupo e precisa resgatar soldados perdidos, sem deixar de dar broncas.
Com fome e fracos, os militares pediam que Raoni convencesse o coronel a encerrar a missão. “Temos medo dele. Você consegue”, disse um militar. Ele atendeu ao apelo e teve sucesso, para aplausos e euforia da tropa. Armaram um mastro, e o próprio cacique hasteou a bandeira nacional.
A expedição termina sem encontrar indígenas nem Che —que seria morto em outubro de 1967, na Bolívia.
Os relatos não trazem datas, uma vez que os indígenas não contam o tempo da mesma forma que os brancos, e os locais por onde os povos passam são chamados pelos nomes originais. No livro, as memórias são acompanhadas de um glossário, uma linha cronológica e textos de apoio (é nesse material que se identifica a data da operação em busca de Che Guevara).
Assim, a obra traça um mapa e uma história ancorados na tradição oral mẽbêngôkre.
Raoni explica: o mundo surge a partir de Iprẽre, que cria tudo. Seu povo chega na Terra quando um indígena, ao cavar uma toca de anta, vai tão fundo que atravessa o chão e, abaixo, avista uma floresta de buritis. Ele e outros descem pelo buraco, e assim os mẽtyktires começam sua jornada.
As visões e interações com espíritos fazem parte de seu cotidiano. A obra, assim, ganha brilho ao tratar essas passagens não do ponto de vista do exótico ou sobrenatural, mas a partir da naturalidade de quem vive em dois mundos, transformando-os em registro histórico afastado do fantasioso.
É assim, por exemplo, que ele mostra os “processos para virar pajé”. A jornada começa em delírios de criança e passa por uma picada de cobra da qual, para se curar, ele interage com pajés, espíritos de peixes, de abelhas, de corujas, e chega a subir ao céu.
Por um lado, o livro mostra a proximidade dele com figuras não indígenas, como os irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas-Bôas. Por outro lado, lembra do cacique guerreiro que caça brancos, quase mata um presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e se coloca na mira de espingardas e rifles.
Há no livro diversos apelos à preservação da floresta e críticas à exploração de minerais, “que hoje os brancos querem tirar debaixo da terra”.
Ele critica o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) —que diz soprar para longe de seus sonhos— e celebra as demarcações feitas por Collor.
Lembra ainda a recente subida pela rampa do Palácio do Planalto na posse de Lula, em 2023, mas lamenta que, em gestões petistas, os brancos “conseguiram enganar os parentes e fazer a barragem” de Belo Monte —a campanha mundial contra o empreendimento é objeto das memórias do cacique, assim como a demarcação de outros territórios pelos quais lutou.
Raoni é natural da aldeia Kapôt Nhinore, nordeste de Mato Grosso. Ele não foi registrado ao nascer, mas, a partir de seus relatos, Fernando Niemeyer calcula de forma inédita que o ano foi 1937. A data exata Raoni revela no livro —claro, pela sua forma de ver o mundo.
“O dia em que Tapiêt [cacique ancestral] chegou com seu pessoal em Krãjmopryjakare [uma aldeia] foi justamente o dia em que eu nasci.”
Fonte ==> Folha SP