O morador de rua Daniel Carlos Lauria, de 36 anos, é um sujeito perigoso, segundo a Justiça paulista, que o condenou a uma pena de um ano e seis meses de prisão. O crime? Ele furtou duas escovas de dentes em uma drogaria.
O caso ocorreu em abril do ano passado em Cosmópolis, uma cidade de cerca de 60 mil habitantes na região de Campinas, no interior paulista.
De acordo com o relato feito à Justiça pelo representante da farmácia onde houve o furto, a Drogal Farmacêutica, Daniel estava no interior da loja e pediu que um cliente lhe comprasse uma escova.
Diante da negativa, pegou a embalagem na prateleira e saiu correndo. Minutos depois, foi detido por um guarda civil na praça do coreto e levado para a delegacia. Acabou sendo solto no dia seguinte, sem falar nada em seu interrogatório.
O julgamento de Daniel ocorreu à revelia. Uma intimação havia sido levada ao endereço que ele apresentara à polícia, mas uma prima disse ao oficial de Justiça que não sabia do seu paradeiro, pois ele era “morador de rua”.
A defesa foi feita pela advogada Elen Bortoloti, indicada pela Defensoria Pública. À Folha ela afirmou que nunca falou com Daniel, assim como não teve contato com nenhum familiar.
Na defesa apresentada à Justiça, a advogada citou “o princípio da insignificância“, ressaltando o valor irrisório da embalagem furtada: as escovas, uma azul e outra verde, custavam R$ 16,95, mas, em promoção, estavam sendo vendidas por R$ 14,99.
A advogada declarou na ação que “a intervenção do direito penal deve se reservar às lesões mais graves, a bens jurídicos relevantes, não sendo razoável a movimentação de todo o aparato judicial para apurar fatos de tamanha irrelevância”.
A discussão sobre a necessidade de se encarcerar pessoas por pequenos crimes é antiga. No livro clássico “Os Miseráveis“, de 1862, Victor Hugo conta que o protagonista Jean Valjean foi preso após roubar um pedaço de pão. Foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados.
No Brasil, a corrente que defende uma política de “tolerância zero” contra qualquer infração entende que as punições severas, além de gerarem uma sensação maior de segurança e ordem na população, inibem a prática de crimes ao enviar sinais claros à sociedade de que a lei será aplicada de modo implacável, desencorajando o comportamento criminoso.
Já os defensores de um direito menos punitivista costumam citar, além da desproporcionalidade das medidas, o alto custo de um preso para o Estado, bem como o fato de que, em uma prisão, o responsável pelos chamados casos de bagatela acabam tendo contato com pessoas envolvidas em crimes graves ou mesmo de facções criminosas, o que pode torná-los efetivamente perigosos.
A jurisprudência brasileira prevê a aplicação do princípio da insignificância com base em critérios como a “mínima ofensividade da conduta”, a “ausência de periculosidade social da ação” e o “reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento”.
O professor Juarez Cirino dos Santos, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), em um artigo publicado, em novembro de 2024, no boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, diz que a subjetividade desses critérios torna as decisões “dependentes das emoções pessoais” e dos “componentes ideológicos do julgador”.
Ele defende que se estabeleça critérios mais objetivos para a definição do que é um delito irrelevante, citando casos não violentos que envolvem o patrimônio. Para isso, sugere que se estabeleça como base um percentual do salário mínimo.
No artigo, argumenta que “juízes identificados com as classes hegemônicas são refratários ao princípio da insignificância na criminalidade de bagatela”. Esses juízes, diz, sempre examinam os casos na “perspectiva de repressão”.
A sentença que condenou Daniel a um ano e seis meses de prisão afirma que a aplicação do princípio da insignificância, no seu caso, seria “conceder salvo-conduto à reiteração de pequenos delitos”.
A decisão cita que o morador de rua “é multi reincidente em crimes patrimoniais, o que denota que faz da prática de crimes seu meio de vida e revela acentuada reprovabilidade em seu comportamento e periculosidade social”. Ele, de fato, já foi condenado no passado por furto de um notebook e furto e receptação de bicicletas.
A pena terá de ser cumprida em regime fechado.
Para efeito de comparação, o advogado Laércio Benko, que foi vereador em São Paulo e secretário de Turismo no governo paulista, foi condenado em maio, sob acusação de se apropriar de uma indenização de R$ 279 mil de um cliente. A Justiça disse, na sentença, que ele agiu de forma dolosa (com intenção).
Benko negou o crime e acusou uma sócia (disse à Justiça que, à época dos fatos, estava ausente do comando das atividades do escritório por exercer cargo público). Acabou recebendo a mesma punição que o morador de rua: um ano e seis meses de prisão, mas em regime aberto.
Houve ainda uma segunda diferença: a punição foi substituída pela prestação de serviços à comunidade e o pagamento de dois salários mínimos. Benko já recorreu da decisão.
Fonte ==> Folha SP