Moradores de vila feita para nazistas lidam com passado – 31/05/2025 – Mundo

Moradores de vila feita para nazistas lidam com passado - 31/05/2025 - Mundo

Numa manhã de janeiro, Susanne Bücker, médica de família em Berlim, acordou preocupada. As eleições nacionais estavam se aproximando, e o defensor mais ferrenho do presidente Donald Trump, Elon Musk, estava publicamente apoiando o partido de extrema direita da Alemanha, a Alternativa para a Alemanha (AfD), cujos líderes têm proferido slogans nazistas e minimizado o Holocausto. Bücker enviou uma carta aos seus vizinhos.

“Amanhã é o 80º aniversário da libertação de Auschwitz”, escreveu ela, expressando seu medo de que o fascismo estivesse novamente criando raízes na Alemanha. Nas semanas seguintes, cerca de 40 vizinhos se reuniram, acendendo velas em seus jardins da frente como parte de um protesto nacional contra o ódio e pendurando cartazes pró-democracia em suas janelas.

“Acho que temos uma responsabilidade especial”, disse Bücker, de 62 anos, enquanto tomava uma xícara de chá, “porque vivemos em uma vila que foi construído por criminosos, para criminosos.”

O pequeno e tranquilo bairro Waldsiedlung (ou “Condomínio da Floresta”) Krumme Lanke é um lugar cobiçado para se viver na capital alemã. Nomeado em referência a um lago adjacente, seus residentes o comparam a uma vila de contos de fadas: pequenas casas com telhados pontiagudos e persianas de madeira estão construídas em uma densa floresta verde, entrecortada por caminhos cobertos de musgo. Áreas inteiras são livres de carros. Crianças brincam nos jardins, enquanto cães correm livremente em um prado inclinado. No verão, uma curta caminhada de chinelos e roupa de banho leva ao lago.

Mas viver aqui também significa lidar com o passado brutal da Alemanha: o bairro foi construído na preparação para a Segunda Guerra Mundial como uma “comunidade de elite” para a SS, ou Schutzstaffel — a guarda de elite do Reich nazista, cujas responsabilidades incluíam a execução do Holocausto.

O SS-Kameradschaftssiedlung (ou Condomínio de Camaradagem da SS), como era inicialmente conhecido, foi um dos poucos empreendimentos habitacionais construídos pelos nazistas em Berlim. Durante a guerra, os aproximadamente 600 pequenos apartamentos, casas geminadas, duplex e chalés abrigavam membros da SS e suas famílias, de acordo com a patente. O assentamento foi projetado para incorporar a ideologia nazista Blut und Boden (“sangue e solo”), que exaltava a relação quase mística dos arianos com sua terra ancestral. A guerra estava nas plantas das casas: os porões foram projetados para funcionar também como abrigos antiaéreos, e a cobertura de árvores era útil para frustrar ataques aéreos.

Como uma placa comemorativa na vila agora reconhece, “a atmosfera pacífica que o assentamento, integrado à paisagem, transmite ao observador imparcial hoje torna difícil recordar sua história.”

É uma história que ainda está sendo desenterrada —assim como as panelas, frigideiras e moedas marcadas com suásticas dos inquilinos originais que os residentes (ou seus cães) desenterraram ao longo dos anos— e evoca a busca de quase um século da Alemanha para lembrar e esquecer ao mesmo tempo.

“Hannah Arendt chamou isso de ‘banalidade do mal'”, escreveu em um e-mail Matthias Donath, historiador especializado na arquitetura nazista de Berlim. Recentemente, a pesquisa de Donath virou manchete quando ele conseguiu traçar uma linha direta de Waldsiedlung Krumme Lanke até Auschwitz, onde o ex-residente da vila Joachim Caesar era o chefe das operações agrícolas.

“Os residentes encontraram condições ideais de vida —um idílio”, disse ele. “E, ao mesmo tempo, planejavam crimes monstruosos.”

Como os residentes aqui lidaram com o passado —ou não— seguiu trajetórias culturais mais amplas. Por décadas, isso foi varrido para debaixo do tapete.

“Um método de sobrevivência em uma Alemanha destruída e moralmente devastada foi a repressão”, disse Donath. Como resultado, alguns dos residentes da vila desconhecem sua história até que os vizinhos lhes contem sobre ela.

“Algumas pessoas dizem: ‘Foi há 80 anos; não tem nada a ver comigo'”, disse Susanne Güthler, 67 anos, professora de crianças com deficiência que se mudou para cá com sua família em 2000. “Para mim, é o oposto. Quero saber o que aconteceu, aqui na minha casa. É intimidador ouvir sobre famílias se afogando no lago Krumme Lanke ou se enforcando no sótão. Mas não se pode seguir em frente com o silêncio.”

Historiadores concordam que, à medida que o Exército Vermelho se aproximava, algumas famílias fugiram, enquanto outras provavelmente cometeram suicídio.

“O condomínio da SS não era um lugar para se esconder”, disse Hanno Hochmuth, historiador do Centro Leibniz para História Contemporânea de Potsdam, durante uma caminhada recente pelo empreendimento. “Os soldados podem muito bem ter encontrado um condomínio pacífico (não se vê nenhum buraco de bala) e então aberto as portas para encontrar corpos mortos, ou flutuando no Krumme Lanke.”

Após a guerra, as casas abandonadas receberam um novo propósito: agora localizadas no setor americano de Berlim, foram usadas como abrigo, com preferência dada às vítimas da perseguição nazista, incluindo combatentes da resistência e refugiados. As plantas familiares, que haviam sido projetadas para encorajar casais a produzir o maior número possível de futuros nazistas, rapidamente transbordaram com os deslocados. Os nomes das ruas foram alterados.

Alguns dos residentes atuais mais idosos chegaram por volta dessa época.

Gisela Michaelis ainda vive na casa geminada de 84 metros quadrados para onde se mudou quando tinha 5 anos, em 1945, junto com sua mãe, dois irmãos mais velhos e duas irmãs mais novas, depois que a família fugiu do avanço do Exército Vermelho no leste. Seu pai, que lutou pela Wehrmacht alemã, nunca voltou da guerra.

“Havia crianças sem fim aqui”, disse Michaelis, 85 anos, contadora aposentada. Ela e seus amigos vagavam pelo condomínio, coletando ilegalmente lenha da floresta, testando sua coragem nos porões ou furtando maçãs e peras dos jardins de casas vazias. “Foi uma infância linda.”

Algumas famílias de soldados derrotados da SS provavelmente também retornaram. “Isso era típico da Alemanha do pós-guerra”, disse Hochmuth. “Nazistas, testemunhas e vítimas, todos vivendo porta a porta sem muita luta. Havia uma tendência a esquecer, a querer recomeçar.”

Michael Joachim mudou-se para o condomínio com sua família em 1946, quando tinha 3 anos, e lembra-se tanto de uma infância feliz quanto das histórias que seu pai contava sobre as famílias que os precederam: “Aquele vizinho entrou no Krumme Lanke com toda a sua família. Aquele se enforcou nas vigas do sótão.”

Joachim, 82 anos, diretor escolar aposentado, lembrou-se de um casal judeu silencioso que morava no que agora é a casa de Bücker. “Ainda posso vê-lo em minha mente, de cabelos grisalhos e curvado”, disse ele. “Só mais tarde pensei: ‘Que tipo de destino eles devem ter tido?'”

A primeira pesquisa real sobre Waldsiedlung Krumme Lanke foi publicada na década de 1980, por volta da época em que uma abordagem popular para reavaliar a história, conhecida como “Cave Onde Você Está”, estava ganhando força na Alemanha Ocidental. Incluía detalhes de como o condomínio foi financiado; a SS não queria pagar por ele, então uma empresa habitacional chamada GAGFAH o construiu para eles.

Juntando folhas sob sua cerejeira, Ingrid Fiedler, 86 anos, disse que não sabia nada sobre a história do condomínio quando se mudou para seu pequeno duplex em 1985. Na época, ela trabalhava para a empresa GAGFAH, que ainda era proprietária e administrava o condomínio. Em um ensolarado dia de outono, ela e seu marido foram andar de bicicleta ao redor do lago. Enquanto descansavam em um banco, outro casal perguntou se eles sabiam onde ficava o “condomínio da SS”. Fiedler tinha ouvido falar dele, mas não sabia onde ficava. “No dia seguinte no trabalho, minha colega disse: ‘Você não sabe que mora lá?’ Isso foi novidade para mim”, disse ela.

A descoberta não mudou o que ela sentia por sua casa. “Eu vivi durante o tempo de Hitler”, disse ela. Agora ela se preocupa com a ascensão da extrema direita. “Se as pessoas continuarem votando dessa maneira, vamos ter tudo de novo. Eu não quero isso.”

Em 1992, Berlim tornou o condomínio um local historicamente protegido, como exemplo de um empreendimento habitacional da era nazista construído no estilo arquitetônico “Heimatschutzstil”, ou “estilo de proteção da pátria”. Mas a relutância em lidar com o passado persistiu: quando a historiadora Karin Grimme pesquisou o condomínio na década de 1990, ela não encontrou um único morador disposto a ser entrevistado. Nos anos 2000, o condomínio foi privatizado —vendido, dividido e revendido— e informações históricas, incluindo antigos contratos de inquilinos, provavelmente foram descartadas.

Entre os residentes atuais, Elmar Bassen e Caroline Frey sabem mais sobre o passado de sua casa do que a maioria. A mulher que lhes vendeu a casa em 2011 era jornalista. Depois que eles visitaram a casa, ela colocou em suas mãos um livro intitulado “Medicina Sem Humanidade” e lhes contou que um médico nazista chamado Joachim Mrugowsky havia morado na casa.

Mrugowsky, chefe do Instituto de Higiene da Waffen-SS, foi julgado em Nuremberg e executado por seus crimes de guerra, que incluíam colocar veneno em uma bala e atirar na coxa de prisioneiros de campos de concentração e depois documentar seus esforços para se engasgar enquanto morriam. Ele também experimentou em cobaias humanas para uma vacina contra febre tifoide.

“Quando ouvimos isso, pensamos: ‘Podemos fazer isso? Podemos nos mudar para cá?'”, disse Frey, que costumava administrar uma revista de música. “Era como se nos perguntássemos: ‘Os tijolos são malignos?'”

Sentados em sua cozinha, com um box set de vinil da banda cult berlinense Beatsteaks em destaque, Bassen, que está estudando para se tornar advogado de direitos humanos, e Frey, professora escolar, disseram que, após muita reflexão, decidiram seguir em frente. O edifício, raciocinaram, não poderia ser responsabilizado pelos atos de seus primeiros habitantes. E talvez sua visão de mundo liberal fosse exatamente o que o lugar precisava.

O casal, ambos com 55 anos, tem sido feliz aqui, assim como seu filho adotivo de 9 anos, Juan. Eles ficaram felizes em se juntar à rejeição da nova iniciativa do bairro à AfD antes das eleições nacionais, nas quais o partido obteve ganhos históricos.

“Penduramos cartazes em nossas janelas para deixar claro, neste condomínio, que somos contra isso; achamos isso horrível”, disse Frey. “Queremos lembrar, porque lembrar dessa coisa horrível pode ajudar a evitar que aconteça novamente.”



Fonte ==> Folha SP

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