Mulheres catadoras representam 61% nos cargos de gestão – 27/06/2025 – Ambiente

Mulheres catadoras representam 61% nos cargos de gestão - 27/06/2025 - Ambiente

As mulheres são maioria entre os catadores no Brasil, que produz mais de 80 milhões de toneladas de resíduos por ano e recicla 4% disso. De acordo com o Atlas da Reciclagem 2023, da Associação Nacional dos Catadores (Ancat), elas são 56% da força de trabalho nas cooperativas e ocupam 61% dos cargos de liderança, mas ainda enfrentam preconceito e acúmulo de funções.

O trabalho de catador ganhou reconhecimento em 2002, quando entrou na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Naquele ano, o total de mulheres catadoras, entre cooperadas e avulsas, era cerca de 32 mil, segundo o IBGE. Em 2024, esse número subiu para 64 mil. Nas últimas décadas, assumiram a linha de frente de cooperativas e redes de reciclagem, conquistaram maquinário, visibilidade e espaço no debate público.

Quando Tânia Cardoso, 65, começou a catar materiais recicláveis nas ruas de Porto Alegre (RS), tinha nove anos e um único objetivo: sobreviver. Entre as décadas de 1960 e 1980, a catação não carregava, para ela, nenhum sentido ligado à conservação ambiental. “A gente não sabia que o papel vinha da árvore, muito menos que o plástico derivava do petróleo. Essa consciência de preservação só veio depois”, diz.

A catadora atuava nas madrugadas para evitar preconceito e perseguição policial. “A gente era tachada de bêbada, arruaceira, ladra”, afirma. O material coletado nas ruas era levado para dentro de casa, onde ela tinha um “puxadinho” para armazenar e separar os recicláveis.

Em 1988, Tânia colocou os quatro filhos na carroça e seguiu para um protesto em frente à Rádio Farroupilha, em Porto Alegre. Ao todo, eram nove famílias —sete delas chefiadas por mulheres— reunidas para exigir melhores condições de trabalho. “Dificilmente a polícia teria coragem de enfrentar uma mulher carregando os filhos.”

Dois anos depois, Porto Alegre se tornou uma das cidades pioneiras na coleta seletiva organizada, com o surgimento de cooperativas e associações de catadores. Hoje, segundo o Instituto Lixo Zero, as mulheres representam 61% da força de trabalho nas Unidades de Triagem da capital gaúcha.

As cooperativas fazem parte da cadeia produtiva da reciclagem. As catadoras realizam a coleta seletiva e levam os recicláveis para a cooperativa, onde fazem a triagem, prensagem e vendem como matéria-prima para fabricação de novos produtos. No Brasil, 90% do material reciclado é recolhido por catadores.

Desde que a profissão foi reconhecida, não se fala mais “catador de lixo”, e sim “catador de material reciclável”, explica Sonia Dias, doutora em ciência política e especialista em resíduos sólidos.

Segundo a pesquisadora, isso deu legitimidade ao trabalho. A Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece regras para reduzir, reutilizar e reciclar resíduos, reconhecendo os catadores como agentes essenciais nesse processo. “Eles são os grandes contribuidores na mitigação das mudanças climáticas. Estar na lei é um reconhecimento importante.”

A catadora Tânia Cardoso concorda. Ela lembra da época em que o pouco que ganhava era resultado de sucessivas revendas: vendia o material para um ferro-velho, que repassava a outro com maior volume e assim por diante. “Todos lucravam em cima de nós. Nós ganhávamos o mínimo do mínimo.” Hoje, ela diz ter eliminado dois intermediários. “Conseguimos 10% a mais de lucro.’’

A flutuação no pagamento dos serviços ainda castiga as cooperativas. Em abril deste ano, a associação da manauara Andrea Soares, 36, destinou 95 toneladas de resíduos às indústrias recicladoras. O valor recebido foi de R$ 7.000. “Esse dinheiro não cobre nem os custos com energia, alimentação, manutenção e transporte”, afirma.

As cooperativas de reciclagem enfrentam constante instabilidade de renda devido à volatilidade dos preços dos materiais. O alumínio, material com maior valor de mercado, pode valer R$ 6,42 por quilo. Já o vidro oscila entre R$ 0,13 e R$ 0,28. As variações dependem da demanda industrial, da qualidade do material, da proximidade com recicladoras e do volume coletado.

A receita média mensal nacional de um catador cooperado em 2022, segundo o Atlas da Reciclagem, era R$ 1.075,97. Na variação regional, a maior renda média foi registrada no Sudeste (R$ 1.347,70) e a menor, no Nordeste (R$ 776,38).

Apesar disso, a profissão continua sendo um caminho de autonomia. Cacilda Soares, 55, encontrou nos lixões de Manaus (AM) uma saída para escapar da violência doméstica e reconstruir a própria vida. Foi entre pilhas de resíduos e longas jornadas de trabalho que ela deu os primeiros passos em direção à independência financeira. Em 2005, com a chegada da coleta seletiva à cidade, fundou a Associação dos Catadores de Material Reciclável do Amazonas (Ascarman).

A filha, Andrea Soares, seguiu um caminho parecido. Também vítima de um relacionamento abusivo e criando os filhos sozinha, encontrou na reciclagem uma rede de apoio. Trabalhando ao lado da mãe, assumiu responsabilidades dentro da Ascarman e hoje é presidente da associação. “Ela me diz que agora eu sou a bola da vez, porque ela já apanhou muito”, afirma.

Em Salvador (BA), Jaqueline Sena, 54, começou na catação aos 18, após engravidar da primeira filha. Sem apoio do pai da criança, passou a percorrer as ruas da cidade com a mãe Maria Tereza, hoje com 83 anos. Dessa prática familiar nasceu, em 2007, a Cooperlix, cooperativa que Jaqueline preside. “Trabalhei com minha mãe, criei meus filhos com o dinheiro da reciclagem’, afirma a baiana.

Todas as 17 cooperadas são mães solo. Segundo Jaqueline, os homens que entraram na cooperativa acharam o trabalho pesado demais. Isso levou sua mãe a criar uma associação formada só por mulheres.

Inspirada pela mãe, diagnosticada com Parkinson, ela explica que a motivação é dar independência financeira para as catadoras. “Quando minha mãe está lúcida, diz para não deixar a cooperativa acabar, porque muita gente depende disso”, diz Jaqueline.

Para a especialista Sonia Dias, o fato de as mulheres dominarem as cooperativas revela um traço das masculinidades no meio social. “O ambiente cooperativado exige construção coletiva de regras e decisões, e muitos homens preferem formas de trabalho autônomas e individualizadas”, explica.

Os estigmas também são parte da realidade enfrentada por diferentes gerações femininas na catação. Nos tempos em que trabalhava na rua, Jaqueline lembra que era abordada diversas vezes. “Os motoristas passavam e diziam: ‘Vocês vão morrer na rua'”. Atualmente, o preconceito tem outra natureza, o gênero. “Tem gente que ainda estranha o fato de mulher fazer coleta.”

Mesmo com dificuldades, a esperança é de que as condições melhorem. “Ainda não estou tão velha assim, não. Com fé em Deus, ainda vou trabalhar bastante. Se a doença não me derrubar e a coluna deixar, eu continuo firme”.


Esta reportagem foi produzida durante o 69º Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, patrocinado pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e pela Philip Morris Brasil. O curso teve ênfase em meio ambiente.



Fonte ==> Folha SP

Leia Também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *