[RESUMO] O texto abaixo reproduz palestra proferida por Luiz Frias em 15 de maio na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). O publisher da Folha afirma que a repetição exaustiva de mentiras é uma característica da extrema direita no Brasil e nos EUA, defende a decisão do jornal de publicar um artigo de opinião de Jair Bolsonaro e sustenta que a latitude máxima da liberdade de expressão é a melhor maneira de promover o confronto de ideias e permitir que as melhores prevaleçam.
Bom dia a todos.
Gostaria, inicialmente, de agradecer à professora Edilamar Galvão e à Faap pelo convite para estar aqui hoje com vocês, alunos do Programa Business Communication and Media, que reúne as formações de jornalismo, publicidade e relações públicas. A professora Edilamar me informou que alunos de relações internacionais, administração e economia também foram convidados. A todos vocês, agradeço pela oportunidade de estarmos juntos para trocar ideias e opiniões.
Também gostaria de propor que vocês me interrompam se quiserem fazer alguma pergunta ou colocação durante a minha fala. Apenas peço que levantem a mão e, assim que eu concluir a frase ou a ideia, passo a palavra.
Pensei em conversar com vocês sobre dois assuntos nesta manhã. O primeiro, ao qual pretendo dedicar nosso tempo, trata da liberdade de expressão e seus limites. O segundo, sobre inteligência artificial, podemos abordar nas perguntas e no debate final, se houver tempo.
Então, vamos lá. Antes de discutir diretamente a liberdade de expressão e seus limites, gostaria de fazer algumas considerações sobre a extrema direita que chegou ao poder, nos últimos anos, em vários países —entre eles o Brasil e os Estados Unidos.
Partindo do princípio de que praticamente todos os políticos mentem em algum grau —seja para exaltar seus feitos, seja para minimizar seus erros—, a atual extrema direita parece ter alçado a mentira a um patamar nunca experimentado, nunca visto.
Começo com o exemplo dos ataques aos sistemas eleitorais e à qualidade das apurações dos resultados —de Trump lá e Bolsonaro aqui—, especialmente evidentes quando ambos perdem a eleição.
Trump repetiu incessantemente que houve “fraude massiva”, mesmo após todas as auditorias, contagens manuais e decisões judiciais (incluindo da Suprema Corte e de juízes nomeados por ele) reafirmarem a lisura do pleito. Bolsonaro afirmou que as urnas eletrônicas eram fraudadas, mesmo sem apresentar qualquer prova, e declarou que só aceitaria o resultado da eleição se vencesse —discurso que encorajou os atos golpistas.
Ora, é sabido que, tanto nos EUA quanto no Brasil pós-democratização, ambos os sistemas são vistos pela comunidade internacional —e pela própria opinião pública desses países— como sistemas amplamente confiáveis. Todas as evidências sustentam isso, como as pesquisas eleitorais que antecederam esses pleitos.
É aí que está a novidade: mentir e reiterar a mentira, repeti-la exaustivamente para insuflar seus apoiadores mais radicais, mesmo que essa mentira vá contra o que acredita a maioria da opinião pública. E o resultado é conhecido por todos: o 8 de janeiro de 2023, após a derrota de Bolsonaro no Brasil, e o 6 de janeiro de 2021, após a derrota de Trump para Biden nos EUA.
Mas os ataques falsos ao sistema eleitoral não são um exemplo isolado. Nos EUA, podemos citar:
Covid-19 —desinformação sistemática:
- Trump disse que o vírus “iria desaparecer como um milagre”.
- Promoveu remédios ineficazes (como hidroxicloroquina e injeção de desinfetante).
- Minimizou a letalidade e atacou agências como o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças).
Invenção de fatos sobre imigração:
- Alegou que o México estava enviando apenas “estupradores e criminosos” para os EUA.
- Usou vídeos e fotos fora de contexto para justificar a construção do muro e políticas de separação familiar.
Obstrução da verdade na imprensa:
- Chamou sistematicamente a imprensa de “inimiga do povo”, criminalizando o jornalismo investigativo e minando uma das instituições fundamentais das democracias liberais.
O mesmo padrão se repete no Brasil de Bolsonaro:
Negacionismo da pandemia:
Desinformação ambiental:
Mentiras históricas e revisionismo:
É pela indignação diante de tudo isso que, nos últimos anos, alguns jornalistas —os mesmos que, durante os anos da década de 1980, contribuíram para a consolidação de um jornalismo que preconizava o pluralismo como um dos pilares editoriais— passaram a questionar esse princípio, ou seja, a ideia de sempre escutar “o outro lado”.
Esses profissionais sustentam hoje que existiria um limite ético para publicar o “outro lado” e que, portanto, jornais deveriam censurar o que ultrapasse esse limite ético e, simplesmente, não publicar.
Acusa-se a Folha —e seu pluralismo— de ser um instrumento de legitimação do “bolsonarismo sem Bolsonaro”, o que seria “o sonho de consumo do patronato da mídia brasileira”.
A crítica decorre da decisão do jornal de publicar um artigo de opinião assinado por Bolsonaro em 10 de novembro de 2024, quase dois anos após deixar o poder e cerca de quatro meses antes de se tornar réu na Justiça, quando terá de se defender do risco de punições que podem somar décadas de cadeia.
Aqui, gostaria de fazer três “disclaimers”, três esclarecimentos, antes de prosseguir.
O primeiro: sou publisher da Folha de S.Paulo, que defende o pluralismo como um dos pilares do jornalismo praticado no noticiário —sendo que noticiário é tudo aquilo que não seja opinião do jornal expressa nos chamados editoriais ou artigo de opinião assinado pelo autor.
O segundo: mesmo defendendo sempre o direito à voz do outro lado (ou dos “outros lados”, uma vez que pode haver mais de um), o jornal não se omite de tomar partido e defender suas posições nos editoriais —espaços na Folha que são apresentados ao leitor sob a rubrica “O que a Folha pensa”.
E o terceiro: nenhum outro jornal foi tão atacado por Bolsonaro quanto a Folha. O ex-presidente, quando ainda candidato, defendeu o fechamento do jornal em plena avenida Paulista e depois, já escudado pela força da Presidência da República, pediu que seus anunciantes suspendessem o investimento publicitário nele.
Antes mesmo de tomar posse, processou a mim e a uma colega jornalista, Patrícia Campos Mello, por uma reportagem publicada na edição de 18 de outubro de 2018 que revelava o financiamento ilegal de disparos em massa de mensagens no WhatsApp contra o PT durante a campanha presidencial daquele ano.
Em fevereiro de 2020, um ex-funcionário da empresa que realizou os disparos alegou falsamente que Patrícia teria se insinuado sexualmente para obter informações.
Essas alegações abjetas e infundadas foram amplificadas pelo próprio presidente Bolsonaro e por um de seus filhos, em declarações caluniosas, difamatórias e sexistas contra a jornalista.
Em março de 2021, a Justiça condenou Bolsonaro a indenizá-la em R$ 20 mil. Em junho de 2022, a 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve a condenação e aumentou o valor da indenização para R$ 35 mil.
Mas por que a Folha, depois de tanta perseguição, publica um artigo do seu maior detrator —justamente quando este está mais enfraquecido e após ter sido chamado em seus editoriais de “o pior presidente” da história, desde a redemocratização?
“Discordo de tudo o que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo” —é a máxima atribuída a Voltaire.
Graças ao legado iluminista, a mais ampla liberdade de expressão é requisito indispensável da democracia moderna. Não se admite censura prévia. Toda opinião deve ser exposta, desde que não incite a violência, o crime. Ofendidos obtêm sanção contra ofensores e compensação na Justiça caso se comprove agressão capaz de causar dano ou violação de direitos do outro.
É do contraditório de opiniões —mesmo as mais detestáveis— que nasce o mecanismo pelo qual erros são corrigidos e a sociedade evolui.
Por fim, publicamos o artigo para dar voz ao “outro lado” que obteve 49,1% dos votos dos brasileiros na última eleição, em evidente interesse público.
A Folha acredita que é pelo confronto entre as piores e as melhores ideias, à luz do dia, que as últimas prevalecem.
E, finalmente, porque não funciona tentar ocultar ou censurar as piores ideias. Está aí Trump 2 para provar a tese.
Essa jurisprudência da Folha, que defende uma latitude máxima para a liberdade de expressão, fundamenta-se, entre outros autores, no filósofo inglês John Stuart Mill (“Sobre a Liberdade”, 1859).
Para Mill, silenciar a expressão de uma opinião significa roubar a humanidade inteira, tanto a geração atual quanto a posteridade, principalmente os que divergem da opinião.
Se a opinião é correta, a humanidade se vê privada da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se é errada, perde a percepção mais clara da verdade gerada por sua colisão com o erro.
Nunca se pode ter certeza se a opinião que tentamos sufocar é uma opinião falsa. Porque nosso juízo é sempre falível. Não temos autoridade para decidir a questão por toda a humanidade e privar todas as outras pessoas dos meios de julgar. Todo silenciamento de um debate é uma pretensão de infalibilidade.
A ideia central do pensador inglês se alicerça, portanto, no argumento da falibilidade do juízo humano. Embora todos saibam muito bem que são falíveis, poucos julgam necessário se precaver contra sua própria falibilidade ou admitem supor que alguma opinião sua, da qual se sentem muito certos, pode constituir um exemplo do erro a que se reconhecem sujeitos.
O mundo, para cada indivíduo, significa aquela parte com a qual ele mantém contato: seu partido, sua seita, sua igreja, sua classe social, seu país e sua época.
Mas épocas são tão falíveis quanto os indivíduos, tendo cada época sustentado opiniões que as épocas subsequentes vieram a considerar não só falsas, mas absurdas. Assim como muitas opiniões, antes gerais, agora são rejeitadas pelo presente, é igualmente certo que muitas opiniões, agora gerais, virão a ser rejeitadas por épocas futuras.
Existe uma imensa diferença ao presumir que uma opinião é verdadeira quando ela nunca foi contestada, quando ela nunca foi refutada. A completa liberdade de contradizer e invalidar nossa opinião é a própria condição que nos justifica supor que ela possa ser verdadeira.
Se não se tivesse permitido questionar a filosofia newtoniana, a humanidade não poderia ter a segurança que possui agora em relação à sua verdade. A única salvaguarda a apoiar nossas ideias é dispor do convite permanente para que todos possam tentar demonstrar que elas são infundadas.
Só com a arena aberta à controvérsia podemos ter a esperança de que, se houver uma verdade melhor, ela será encontrada quando a mente humana for capaz de recebê-la e confiar que nos aproximamos da verdade tanto quanto possível em nossos dias. Esse é o tanto de certeza que um ser falível pode alcançar, e essa é a única maneira de alcançá-la.
É estranho que os homens considerem válidos os argumentos em favor da livre discussão, mas objetem a que sejam “levados ao extremo”, sem ver que, a menos que as razões sejam boas para um caso extremo, não são boas para caso nenhum.
É estranho que imaginem não estarem presumindo infalibilidade, quando reconhecem que deve haver o livre debate sobre todos os assuntos que possam ser duvidosos, mas pensam que alguma doutrina ou princípio particular deveria ficar imune a questionamentos porque é certo, isto é, porque eles têm certeza de que é certo.
Dizer que uma proposição é certa, enquanto há alguém que, se lhe fosse permitido, negaria sua certeza, é presumir que nós mesmos, e aqueles que concordam conosco, somos os “juízes da certeza”, e juízes sem ouvir o outro lado.
Um bom exemplo da falibilidade do juízo humano é Sócrates. Uma das mentes mais brilhantes da Antiguidade foi condenado à morte por seus conterrâneos depois de uma condenação judicial por impiedade e imoralidade. Impiedade por negar os deuses reconhecidos pelo Estado. Seu acusador afirmou (veja-se a “Apologia”) que ele não acreditava em nenhuma divindade. Imoralidade por ser, com suas doutrinas e ensinamentos, um “corruptor da juventude”. O tribunal o julgou culpado, e Sócrates foi condenado à morte, mas a filosofia socrática se ergueu como o sol nos céus e difundiu sua luz por todo o firmamento intelectual.
São inúmeros os exemplos de pensadores à frente de sua época que foram considerados hereges pelo seu pensamento.
Na Antiguidade, os sábios não só acreditavam que a Terra fosse redonda como um deles, Eratóstenes (matemático, astrônomo, geógrafo e bibliotecário-chefe da Biblioteca de Alexandria) chegou a calcular com surpreendente precisão —uma margem de erro de menos de 2%— a circunferência da Terra por volta de 240 a.C. O erro da época foi acreditar no sistema geocêntrico no qual a Terra é considerada o centro do universo.
Como exemplo da tese de que no longo prazo as melhores ideias prevalecem quando confrontadas com as piores, Galileu Galilei confirma por meio de observações astronômicas o modelo heliocêntrico de Copérnico no começo do século 17, segundo o qual a Terra gira em torno do Sol, contrariando a visão geocêntrica aceita pela Igreja Católica na época.
Galileu é condenado pela Inquisição em 1633 e obrigado a abjurar publicamente suas descobertas. Mesmo assim passa seus últimos anos em prisão domiciliar e seus livros são proibidos.
A real vantagem da verdade é que, quando uma opinião é verdadeira, pode ser abafada uma, duas, muitas vezes, mas, no decorrer dos tempos, surgirão pessoas que voltarão a redescobri-la, até que alguma dessas suas reaparições recaia numa época em que, por circunstâncias favoráveis, ela escape à perseguição por tempo suficiente até alcançar tal vulto que resistirá a todas as tentativas posteriores de sufocá-la.
Uma ideia que não pode ser confrontada, que não pode ser refutada, deixa de ser uma ideia e se transforma em um dogma. O problema é que a censura a supostas más ideias sempre tem de ser praticada por alguém. Mesmo que ela seja exercida pelas melhores cabeças, pelas mentes mais brilhantes de uma época, não se pode esperar que o juízo desse “Conselho de sábios” possa aproximar-se mais da verdade do que o choque e confronto de ideais propiciado pela ampla liberdade de pensamento e expressão para todos os homens.
É com essa liberdade de pensar e expressar todas as ideias —inclusive as más ideias— e confrontá-las uma com as outras que o pensamento científico progride e o conhecimento humano pode avançar. A partir da colisão de ideias opostas, num processo que se assemelha ao da seleção natural dos genes mais aptos, é que as melhores ideias prevalecem sobre as piores e o conhecimento progride.
Fonte ==> Folha SP