Cercada de amigas numa mesa em que se disputa uma partida de buraco, Nana Caymmi comemora a boa jogada: “Olha que maravilha. E a puta quando joga, joga mesmo… Cafetina!”. A autocelebração segue segundos depois, noutra chave, quando ela ouve a música que toca ao fundo, “Saudade de Amar”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, em sua própria voz.
Depois de cantar, de olhos fechados, alguns versos junto com a gravação, ela exclama: “Gente, eu me adoro cantando! Gosto demais de mim. Puta que pariu, que música”. Seca as lágrimas e, novamente com as pálpebras cerradas, sorve a canção mais um tanto —agora alheia ao jogo que segue.
Nesta cena —minha favorita de “Rio Sonata”, documentário de Georges Gachot sobre Nana, lançado em 2010—, resplandece a alma da cantora, morta aos 84 anos nesta quinta-feira. O linguajar profundamente mundano, assim como o jeito de estar na mesa de jogo, revelam uma presença integral próxima do chão, da vida vulgar, do prazer destituído de qualquer adorno de nobreza.
Sem escalas, porém, ela revela uma conexão direta com o divino no mero cantarolar de “Saudade de Amar” que lança naquele ambiente.
Sua voz instaura —ali e em qualquer lugar que se a ouve desde sua aparição na adolescência em “Acalanto”, em disco do pai Dorival Caymmi— um estado de suspensão, uma dimensão de estranheza e beleza que parece falar com algo anterior mesmo à linguagem, numa frequência que parece nos atingir antes pelo avesso da pele do que pelos ouvidos.
Mas isso sem que ela abandone em um milímetro a dimensão da canção, da linguagem, da comunicação direta presente no encontro de verso e melodia. Mais do que isso, seu canto potencializa essa comunicação. Nos toca antes da linguagem e no fundo dela. O esforço em juntar palavras que deem conta da voz de Nana é testemunho nítido da originalidade e da força de seu canto.
Assim, o autoelogio do primeiro momento da cena do filme de Gachot —”Cafetina!”— não se confunde com o autoelogio do segundo momento —”Eu me adoro cantando”—, apesar de serem irmãos. O primeiro é puro hedonismo, sacralização do prazer. O segundo vem no sentido oposto, de extrair prazer do sagrado. Nenhum dos dois traz a vaidade como traço principal —a vaidade estava ali como marca de humanidade, mas Nana ia sempre além dela. Ambos os momentos revelam alguém plenamente consciente do que a vida é e do que ela pode ser, tem que ser.
No palco, era possível observar esse mesmo movimento. Nana podia reclamar aos palavrões do ar condicionado ou da plateia que falava alto para, no segundo seguinte, entoar, como se nada de terreno fosse da sua conta, algo como “vire essa folha do livro e se esqueça de mim” ou “batidas na porta da frente/ é o tempo” —versos que abrem, respectivamente, “Medo de Amar”, de Vinicius de Moraes, e “Resposta ao Tempo”, de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, duas canções que encontraram nela suas interpretações definitivas.
Da mesma forma isso se dava em sua vida pública, onde era capaz de desferir ofensas grosseiras a colegas por divergências políticas e seguir sendo a artista que é. Chamar isso de contradição é perder de vista que ambas as dimensões eram fruto de uma relação desmedida com a existência.
Essa relação de entrega à vida se mostrou a mim inúmeras vezes, nas muitas entrevistas que pude fazer com ela ao longo dos últimos 25 anos. Como quando, ao lado de Maria Bethânia, ela contou que ao ouvir “A Tua Presença”, de Caetano Veloso, na voz da colega, lamentou não ter sido ela a lançar a canção —o que nos surpreendeu ao revelar a amplitude de sua sensibilidade, já que a composição pouco tinha a ver com o que se consagrou como seu estilo.
Ou nas oportunidades em que, após a morte de alguém célebre que era seu amigo, eu ligava para pegar um depoimento e ficava longos minutos ouvindo comoventes e divertidíssimas memórias e considerações sobre o personagem, algumas impublicáveis, que ela emitia entre lágrimas e gargalhadas.
Uma compreensão da morte que passava essencialmente pela saudade —palavra tão presente em seu repertório—, mas também pela alegria de se saber que a vida é esse lugar onde se joga buraco e se escutam canções lindas.
Sobre canções lindas, costumo dizer que há muita coisa na música popular brasileira que se iguala, em elevação, à gravação de Nana para “Acaçá”, composição menos conhecida de seu pai. Mas não consigo pensar em nada que a supera. “Acaçá” é uma ode ao bem-feito —uma ode à forma, essa instância que no mundo contemporâneo é posta em segundo plano frente ao discurso. Seus versos louvam a perfeição do acaçá de milho, do ato de vendê-lo e do corpo da mulher que o vende, descrito indireta e elegantemente pelo contorno da bata caindo do ombro para o peito.
Nana ecoa essa perfeição em sua interpretação, acompanhada pelo violão de seu irmão Dori. Uma realização de quem entendia o tamanho de uma canção bem-feita, de uma canastra real bem-feita. E que afirmou ao longo da vida que divino e terreno são dimensões que, mais do que isoladas, se constroem a partir de esquinas como a da música popular.
De diálogos como aquele em que ela —vestindo o personagem em primeira pessoa— tem com o tempo em “Resposta ao Tempo”, não à toa tão precisa, bem-feita como acaçá, em sua voz.
Fonte ==> Folha SP