Nathan Fielder investiga acidentes de avião em ‘O Ensaio’ – 30/05/2025 – Ilustrada

Nathan Fielder em cena da segunda temporada da série

Na cabine de um avião, piloto e copiloto discutem falhas técnicas. Preocupado, o último sugere medidas urgentes e o chefe orgulhoso o ignora. A situação foge ao controle e o fim iminente se aproxima —a aeronave cai e a dupla morre. É quando percebemos se tratar de uma encenação.

O simulador paralisa dentro do estúdio. Labaredas saltam de um grande telão de LED. Em meio às chamas, um observador. Quem vigia o experimento é o comediante Nathan Fielder, criador de “O Ensaio”. A brilhante série documental da HBO mistura realidade e ideias absurdas para que pessoas comuns ensaiem situações desafiadoras de suas vidas.

Se na primeira temporada uma mulher pratica, por meses, a maternidade —incluindo um sistema com atores mirins de várias faixas etárias—, este segundo ano procura tornar a aviação mais segura. O salto de Fielder como ator —ele também dirige e protagoniza os seis episódios— é grande, e ele próprio desdenha da proposta. Poderia um humorista fazer do mundo um lugar melhor?

Conhecido pela postura metódica, quase um robô, Fielder une entrevistas constrangedoras e simulações mirabolantes para testar mudanças de comportamento. Mas se engana quem o vê como cientista obcecado, que disseca cobaias, sempre isolado.

Ele aborda questões suas a partir das dinâmicas a que submete os outros. É uma forma eficiente de cativar o espectador, já que o artista vive tudo junto deles e reverte a própria imagem —a de um homem distante, sem jeito nas palavras, incapaz de reconhecer fragilidades.

A hipótese da vez põe a má comunicação entre pilotos e copilotos como a maior causa de acidentes de avião. Seja pelo medo ao discordar de superiores, seja pela falta de intimidade entre tripulantes, as conversas falham e o apresentador propõe maneiras geniais de resolvê-las.

Para isso, ele recria um terminal de aeroporto com todo o dinheiro da HBO a que tem direito, inventa um programa musical para testar a resiliência de aeronautas ao recusar participantes e até interpreta a vida do capitão Sully Sullenberger, na tentativa de entender o que determinou o bem-sucedido pouso sobre o Rio Hudson. São situações que crescem a cada capítulo e derivam para outros assuntos. Quem assiste nunca sabe o que pode encontrar.

Continuando a temporada anterior e seu primeiro grande projeto —o reality “Nathan For You”, em que oferece soluções bizarras para pequenos negócios—, seu comprometimento com as experiências revelam desafios pessoais

Um dos destaques é o episódio em que introduz seu programa de audições, “Wings of Voice”. Ao se passar por jurado, percebe que a falta de delicadeza não é bem aceita. Ele passa a imitar uma copilota muito elogiada pelos candidatos. São traços que o ator pega emprestado para esconder sua verdadeira face.

Mas isso não impede que suas inseguranças venham à tona. Exemplo disso se dá ao comparar a comunicação em altas altitudes com atritos que viveu em relação à Paramount+.

Em 2023, o streaming o chateou ao remover um episódio sensível de “Nathan For You”, disponível na plataforma. Ele revive a ansiedade de contestar a “censura” cometida pelos supervisores. O desvio autocentrado aprofunda os estudos sobre aviação e dá lugar a um ato ainda mais exagerado, não menos magnético.

Fielder encena uma visita ao escritório da empresa. Ele cruza um corredor amplo e finge encontrar um representante no centro de um salão imponente. Insígnias sugestivas saltam das paredes, filas de soldados são avistadas pela janela e o anfitrião usa um sotaque alemão. A estranheza vem menos da piada que de seu peso sobre o próprio artista.

Chama atenção também o terceiro capítulo da temporada, quando refaz os passos do herói do Rio Hudson. Ao recriar a vida do capitão do nascimento à fase adulta, ele dobra as ambições do seriado e estuda a própria noção de se incorporar em outra personalidade. É quando a série abusa de sua coragem e atinge o ápice da loucura, trazendo clones caninos, marionetes gigantes e detalhes impressionantes saídos de um sonho lynchiano.

Estamos diante de um mágico capaz de conjurar outras realidades. Um ser que projeta espaços enormes, vazios em sua grandeza. Que ocupa corpos além do seu, manipula interações, mas deixa frestas entre o que há de mecânico e impulsivo em suas obras.

A partir daí, os episódios optam por uma escala mais íntima, mas nem por isso menos encantadora. É quando Fielder desfaz as barreiras que ainda restam e expurga a própria natureza.

A megalomania se desfaz e o vemos vulnerável como nunca antes. As dúvidas se multiplicam. As brechas estão mais aparentes e o inventor maluco se mistura aos reles mortais. Suas cópias desaparecem e existem menos projeções para escondê-lo. Talvez o ensaio não seja mais necessário.

Entre pilhas e pilhas de ideias e simulações, a essência deste gênio surge aos poucos. Difícil é saber, exatamente, o que é verdade e o que é mentira no meio desta deliciosa bagunça. Muito menos se os métodos terão qualquer efeito sobre a aviação. Mas isso nem é o mais importante. Importa mais que Fielder se permita viver como humano.



Fonte ==> Folha SP

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