A essa altura, o blecaute desta última segunda-feira (28) que atingiu Espanha e Portugal já virou meme, objeto de estudo para-nunca-mais, instrumento de disputas políticas e assunto de especulação entre gentes várias, que oscilam entre apelidar o evento de “apocalipse zombie” e insistir em conversas preocupadas sobre um possível ciberataque, contrariando o que afirmam as autoridades até o momento.
Imagens do maior apagão da história da Península Ibérica circulam por toda a internet com gente presa em elevadores e vagões de metrô, ou vagando pelas ruas em meio a um caos de carros parados e semáforos apagados; dormindo pelos chãos de aeroportos e estações de trem; enfrentando filas quilométricas pra disputar um táxi ou Uber; fazendo vigília na frente de seus comércios por medo de roubos.
Por outro lado, também ganham muitos likes os vídeos que mostram praças repletas de animada turba, jovens e velhos; multidões reunidas em volta de radinhos de pilha pra ouvir as notícias; bares lotados, céus sem contaminação luminosa, a algazarra das crianças nas ruas.
Um dia. sem. eletricidade. Até onde a vista satelital alcançava.
Por aqui, prosaicas, humildes e parcialíssimas observações/lições de uma brasileña surfando a vida española:
– a ausência de internet-telefone-ruído-tevê-input a princípio gera taquicardia, observo; pouco a pouco, porém, junto com o entardecer, o coração vai se acalmando [claro, depois de ouvir no radinho da vizinha que não estamos em guerra e a luz em algum momento voltará] e se sincronizando com a noite.
Sem estímulos infinitos e telas azuis (que já tento evitar no dia a dia, ciente de minhas dificuldades com o sono menopáusico), relaxei e dormi como um BEBÊ PRÉ-CLIMATÉRICO.
– passeando a esmo pelas ruas, vejo muitas cabeças juntas, erguidas, conversas soltas, grupos sortidos e improvisados, desconhecidos momentaneamente familiares.
– em Madri e alhures, a situação emergencial inspirou até a volta temporária de uma instituição dasantiga: o fiado.
Teve dono de bar e vendinha pendurando a conta até pra galera comprar cerveja, com algum deles alegando depois em entrevista: “claro que eu confio que vão vir me pagar depois”. Hm. De qualquer forma, como celebrou alguém do time dos bem-humorados: o bom é que grifo (torneira) de cerveza funciona sem eletricidade.
Mais alguns dias de apagón, porém, e toda essa solidariedade serelepe (ou, como o premiê espanhol chamou no pronunciamento da tevê, a civilidade admirável do povo espanhol, ou algo así) iria pro ojete del culo — literalmente. Já consigo imaginar um revival das temíveis disputas por papel higiênico.
– aliás: o apagão também despertou o trauma recente da pandemia em muita gente.
“Foi um choque no meu sistema: por algumas horas, fiquei com medo de a gente ser confinado de novo”, desabafou uma amiga inglesa que também vive em Barcelona. “Depois do vírus eu acredito em qualquer catástrofe”, confessou outro amigo.
“Minha avó, estou com medo pela minha avó de 90 anos! Ela sobreviveu a pandemia, e agora, isso?!” foi o que outra mulher me disse, chorosa, na rua. Telefones fora do ar. Ela me olha de relance e dispara: será a guerra?
– depois do apagão, tem gente reconsiderando a ideia de comprar o kit de sobrevivência. Inclusive (mais ou menos) eu.
Meu parça já comprou 2 lanternas com bateria a corda que servem pra carregar o celular.
“A 2% por hora”, comentei, chatinha.
“Algo es algo!“
Ele também conseguiu chegar de moto a uma grande loja logo antes de fechar e comprar o último fogareiro de acampamento, no qual cozinhamos uns gloriosos ovos com verduras à noite no quintal.
– lição mais importante de todas: tenha à mão um rádio de pilha. Ou certifique-se de que consegue fazer funcionar seu rádio no celular.
Minha cunhada, que trabalha com cuidado de idosos e vive no andar de baixo do predinho onde moramos, foi quem nos contou essa do celular — é, a gente nem sabia.
“É só colocar os fones com cabo que eles funcionam como antena. Experimentem”.
Ficadica.
– lição mais importante de todas II: tenha à mão trocados ou, como se diz aqui, efectivo. Não tem pix (aqui, bizum) que te salve num apocalipse zombie — ou o apagão de um dia.
Tive sorte. Sou consciente. Não fui das pessoas que ficaram encerradas por até 7, 8 horas em um elevador; e nem das inúmeras que, presas em uma cidade distante de casa, turistas ou não, não encontraram onde dormir, perderam voos, viagens, contato com família, trabalho, a cabeça. Tampouco sou das que sofrerá consequências econômicas de mercadorias e tempo perdido.
Agora é fácil dizer que está tudo bem, mas por algumas horas da última terça realmente acreditamos em Muitas, pero Muchas Cousas.
Pela noite, porém, fui feliz: pude observar as estrelas — e até os fogachos noturnos me deram uma trégua.
Fonte ==> Folha SP