[RESUMO] Tradução consagrada de “O Capital”, obra-prima de Karl Marx, publicada no Brasil nos anos 1980 volta às livrarias, com texto revisado, pela editora Ubu. Reedição reacende debate a respeito das qualidades e dos problemas das versões brasileiras, como a publicada pela Boitempo uma década atrás que virou alvo de controversas quando se soube que seu tradutor era amigo de Olavo de Carvalho e pesquisador de autores antimarxistas.
Em um texto intitulado “Como não traduzir Marx”, Friedrich Engels escreve que, para traduzir “O Capital”, não basta conhecimento razoável do alemão literário: “para entendê-lo, deve-se ser, de fato, um mestre do alemão”.
Ciente disso, a editora Ubu acaba de relançar, em edição revisada, uma consagrada tradução da obra-prima de Karl Marx, realizada por Flávio R. Kothe e Regis Barbosa, com coordenação e revisão do economista Paul Singer.
Publicada originalmente entre 1983 e 1985 pela editora Abril, a tradução surge no contexto dos chamados “seminários de Marx”, grupo de estudos formado em 1958, na faculdade de filosofia da USP, para analisar “O Capital”.
O grupo reunia professores e alunos interessados em explorar um “marxismo rigoroso mas não dogmático”, como escreve Roberto Schwarz, que “afrontava o direito de exclusividade que os partidos comunistas haviam conferido a si mesmos” sobre os clássicos marxistas. Além de Schwarz, integraram o grupo Ruth e Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Octavio Ianni, Bento Prado Jr., Michael Löwy e Paul Singer, que faleceu em abril de 2018.
Afastado da USP desde 1969, quando teve suas atividades como professor na faculdade de filosofia cassadas pelo AI-5, Singer passou a lecionar na PUC de São Paulo, onde conheceu o parceiro de tradução Flávio R. Kothe. Agregando Regis Barbosa, que acabara de voltar de estudos em economia política na Alemanha, o grupo se reunia todos os sábados na casa de Singer, no bairro de Higienópolis, para discutir a tradução.
Atentos ao nível de detalhe que requer o texto marxiano, eles cunharam, naquele momento, as traduções dos três termos fundamentais de Marx, consideradas as mais precisas conceitualmente no mercado brasileiro: “Mehrarbeit”, mais-trabalho; “Mehrprodukt”, mais-produto; “Mehrwert”, mais-valia.
Já naquele momento, Kothe começa a discordar de seus companheiros: entre precisão e convenção, venceu a última, ele diz, por mais que brigasse pela primeira.
O tradutor explica que a consagração do termo “mais-valia” parte de um erro da tradução francesa, que usou “plus-value” no lugar do mais exato “plus-valeur” (mais valor). Singer e Barbosa, no entanto, optaram pela manutenção do tradicional “mais-valia”, comumente usado hoje.
Em entrevista à Folha, Kothe lembra que o processo de tradução dos três volumes de “O Capital” durou cerca de três anos turbulentos. Tirado de seu cargo como professor na faculdade de letras da UNB desde 1977, por conta de uma intervenção militar, ele se instalou em São Paulo para lecionar na PUC ao lado de Singer e Florestan Fernandes.
Detestado pelos concretistas (relata briga que teve com Haroldo de Campos após criticar seu “Aproximações ao Topázio” como alienado à realidade da ditadura militar) e apartado do nacionalismo que o movimento modernista suscitava entre os colegas (repreende Antonio Candido, que “preferia ler 27 vezes uma obra de Guimarães Rosa a estudar filosofia alemã”), acabou afastado da faculdade menos de quatro anos depois.
Desempregado, foi convidado por Florestan a traduzir livros para a coleção “cientistas políticos”, na editora Ática. Entre períodos de desemprego e de trabalho intenso, Kothe passou, em 1983, a dedicar-se exclusivamente à tradução de Marx, primeiro para a Ática, depois para a Abril.
O êxito comercial da tradução foi tamanho que, em 1984, os volumes ganharam destaque em um relatório confidencial do Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar, classificados como “literatura adversa ou pornográfica” responsável pela “difusão de ideias contrárias aos interesses nacionais”.
O relatório afirma: “para se avaliar a força de penetração da venda de livros em bancas de jornais, toma-se, como exemplo, o livro ‘O Capital’ de Karl Marx, recentemente lançado pela Abril, que vendeu, em pouco mais de um mês, cerca de 60 mil exemplares”.
Ao mesmo tempo que comemora o sucesso editorial, Kothe lembra que, no regime militar, “quanto mais seu nome aparecia, mais perigoso era”. Por isso, celebra a edição da Ubu, que “resgata o legado do passado e o aprimora”.
Aos 78 anos, professor aposentado da UNB, Kothe se dedicou à revisão de sua tradução durante quase um ano. Regis Barbosa, aos 81, optou por não participar do processo, mas deu carta branca ao colega. A nova edição foi encabeçada por Bibiana Leme, que trabalhou durante três anos nos textos.
Ela conta que o trabalho de revisão consistiu na padronização de escolhas da tradução original, que contava com inconsistências ao longo dos três volumes. O encontro com a obra de Marx não foi novidade para ela, responsável também pelos volumes do mesmo livro na Boitempo, editora com amplo catálogo de autores e livros de esquerda.
Ivana Jinkings, fundadora e diretora da Boitempo, conta que, ciente da existência da tradução coordenada por Singer, a editora optou por fazer uma nova versão. “Cogitei aproveitar a velha edição da Abril, mas alguns dos membros de nosso conselho, que conta com nomes como Jacob Gorender e Michael Löwy, sugeriram que o melhor seria fazer uma nova tradução, levando em conta equívocos daquela edição. Rubens Enderle, já tendo vertido, com excelência, outros títulos para a Boitempo, foi o escolhido.”
Publicada entre 2013 e 2015, a tradução de Enderle foi premiada com o Jabuti, a mais tradicional honraria literária do país. No entanto, virou fonte de controvérsias quando o público leitor descobriu as ligações do tradutor com Olavo de Carvalho, principal referência intelectual da direita brasileira nas últimas décadas, e sua simpatia por autores críticos do marxismo, como o alemão Eric Voegelin.
Apesar de reafirmar a qualidade do trabalho de Enderle ao longo dos anos em que ele esteve na Boitempo, Jinkings optou por cancelar novas colaborações após saber de sua aproximação com o olavismo. “Decidimos não mais contratá-lo para novas traduções, por suas posições ferirem nossa linha e nossos posicionamentos públicos. Isso, entretanto, não significa que quaisquer de seus trabalhos devam ser colocados em dúvida. O que ele traduziu foi bem feito e seguirá em nosso catálogo”, escreveu a diretora da Boitempo em abril de 2021.
Morando na Alemanha desde 2007, Enderle começou sua trajetória como tradutor de Marx ainda no mestrado, quando defendeu uma tese sobre o “jovem Marx” na faculdade de filosofia da UFMG.
Em Berlim, fez pesquisas no arquivo da Mega (Marx-Engels-Gesamtausgabe), um projeto de edição histórico-crítica dos trabalhos de Marx e Engels que recupera manuscritos originais para formular uma coleção de suas obras completas. Com essa bagagem, foi convidado pela Boitempo para traduzir “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, publicado em 2010.
Nesse mesmo ano o tradutor mudou o rumo de sua pesquisa acadêmica, de Marx para Voegelin, na Ludwig-Maximilians-Universität. Ele conta à reportagem que naquele contexto conheceu o trabalho de Olavo de Carvalho, “único intelectual brasileiro que tratava extensamente de centenas de pensadores” pouco conhecidos ou, “em muitos casos, deliberadamente ignorados ou censurados” no meio acadêmico brasileiro, a seu ver “dominado por uma ideologia marxista vulgar, sectária e autoritária”.
Sobre a contradição entre as duas pesquisas, Enderle afirma: “Essa mudança de orientação teórica nunca teve qualquer relação com minha prática como tradutor. Minha abordagem tradutória sempre foi regida pelo mesmo princípio: o da máxima fidelidade ao original. Acredito firmemente que o trabalho de tradução e edição deve estar acima de qualquer preferência teórica ou filiação ideológica do tradutor. No caso de Marx, estou convencido de que uma boa tradução não deve ser marxista nem antimarxista, mas sim marxológica”. Sua definição de marxologia é “o estudo dos textos de Marx segundo uma abordagem científica, rigorosa, livre de qualquer ideologia”.
José Paulo Netto, professor emérito da UFRJ e um dos principais pesquisadores do marxismo no Brasil, afirma que a tradução da Boitempo é a única edição brasileira confiável da obra de Marx com que teve contato até o momento.
Tendo se aproximado das versões mexicana e francesa de “O Capital” no início da década de 1960, quando inexistiam em português os três livros, classifica como “muito problemática” a tradução de Reginaldo Sant’Ana para a Civilização Brasileira, publicada entre 1968 e 1974. E lembra-se da tradução da Abril com indiferença.
Ele define que uma boa tradução de Marx “se caracteriza pela manutenção da complexidade do seu universo categorial, pelo mais estrito respeito e a mais rigorosa fidelidade ao processo de reflexão do autor”.
Com o objetivo de aproximar-se do processo intelectual de Marx, que editou à exaustão sua obra-prima durante seus últimos anos de vida, a edição da Ubu acrescenta materiais valiosos. Por exemplo, as alterações da primeira edição francesa de “O Capital” feitas pelo próprio autor e selecionadas por meio do levantamento filológico da Mega 2, continuação do projeto de edição das obras de Marx e Engels.
Para Fernando Rugitsky, professor de economia da University of the West of England e prefaciador dos três volumes da Ubu, a edição francesa é útil para a discussão de Marx no Brasil pois “ilustra um momento em que o autor estava questionando uma visão unilinear da história e cogitando a possibilidade de o avanço do capitalismo assumir formas distintas em diferentes períodos e regiões”.
Se a nota da edição afirma que o propósito do livro continua sendo “levar ao maior número de pessoas sua análise do modo de produção capitalista, para que um dia os trabalhadores do mundo possam romper seus grilhões”, o preço de R$ 459 (caixa com os 3 volumes) não parece ajudar.
Florencia Ferrari, diretora-geral da Ubu, reconhece a contradição, afirmando seu compromisso com a democratização. “Sabemos que é um livro restrito, e o acesso a ele é uma preocupação da Ubu. Por isso, está previsto desdobrá-lo em uma versão muito acessível. Neste momento, estamos priorizando o retorno do investimento que tivemos nos últimos três anos de trabalho e de impressão.”
Inseridos na história do pensamento marxista brasileiro, os volumes têm, para Fernando Rugitsky, “toda a condição de marcar um novo capítulo na recepção da obra”.
Concorda com ele Vladimir Safatle, consultor da edição, que defende esta como “a melhor das traduções hoje em circulação no mercado brasileiro por sua precisão conceitual e fluidez de leitura”.
Possibilitando leituras de diversos aspectos da sociedade contemporânea, do sofrimento social à crise climática, a reedição permite que o livro seja redescoberto em seus próprios termos, refletem os acadêmicos.
José Paulo Netto sintetiza: “A meu juízo, que venham mais reedições, bem traduzidas e bem editadas de ‘O Capital’. Goste-se ou não, Marx ainda será nosso companheiro de viagem por gerações”.
Fonte ==> Folha SP