Nos parques de samambaias gigantes e ilhas de areias vulcânicas da Nova Zelândia, vivem kākās, kererūs, tūīs, piwakawakas e whios. Não são criaturas mágicas do mundo dos hobbits e, sim, pássaros que só existem neste canto do mundo. Por pouco, porém, não se tornaram apenas histórias do passado.
Ao se deparar com algum deles numa trilha nas montanhas ou mesmo num jardim urbano, é bem provável ter passado, talvez sem perceber, por uma caixa de madeira no chão. É uma armadilha para pegar predadores, um objeto precioso para os defensores da fauna nativa, obstinados numa atividade que virou um hobby nacional.
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“No começo, pegava uns 300 ratos, camundongos e ouriços por ano”, disse o aposentado Chris Hare, voluntário de um grupo de “trapeiros” (“trappers” em inglês), gente que fabrica, instala e checa as armadilhas (“traps”) com frequência em lugares diversos, do quintal de casa a parques nacionais.
“Quando as pessoas percebem as melhorias, elas se animam, se juntam. Nunca via kākās por aqui, e agora elas estão por toda a parte. Foi como um sonho”, continuou Hare sobre um dos três papagaios endêmicos da Nova Zelândia e único cuja população está em recuperação.
Numa tarde de sábado de março, Hare cortava madeira numa serra barulhenta para construir as caixas retangulares, num evento com outros 20 voluntários na sede da Predator Free Wellington (PFW), na capital.
Com 32 funcionários, 2.500 voluntários e dois cachorros farejadores, a ONG começou seus trabalhos na cidade de 214 mil habitantes em 2019. O grupo faz parte de uma rede nacional inspirada por uma meta simples, ainda que ambiciosa, traçada pelo governo: livrar o país de predadores até 2050.
“Aqui em Wellington, queremos terminar em dez anos”, disse à reportagem James Willcocks, um dos fundadores da PFW, que pretende “limpar” 30 mil hectares (cerca de 300 km², área equivalente a Cotia, em SP).
“É uma ideia maluca, certo? Nunca foi feita em nenhum lugar do mundo. Mas tenho fé”, continuou Willcocks, que trabalhou por 16 anos no Departamento de Conservação. “Queremos ser exemplo para outros centros urbanos na Nova Zelândia e no mundo.”
Espécies invasoras, como ratos e doninhas, são responsáveis pela morte anual de 25 milhões de pássaros nativos, que evoluíram por milênios sem predadores terrestres à vista. Não existem cobras neozelandesas, e os únicos mamíferos endêmicos são morcegos e animais marinhos. Algumas aves tampouco voam, como o papagaio kākāpō, o ralídeo azul takahē, e o kiwi, símbolo nacional, três criaturas que só podem ser avistadas em santuários.
“Os únicos predadores que nossos pássaros tinham que escapar eram outras aves, como a águia-gigante-de-Haast, que agora está extinta”, conta Willcocks. “Para se defender dos ataques vindos do alto, elas adquiriram cores mais monótonas; algumas até perderam a capacidade de voar, ou voam só de galho em galho, e muitas fazem seus ninhos no chão. Assim, com esses predadores, não tinham chance.”
Um dos focos de erradicação são mustelídeos, como doninhas e furões. Eles foram introduzidos no século 19 por colonizadores europeus para controlar a população de coelhos que, por sua vez, foram trazidos para caça e alimentação, logo virando uma praga.
Outros alvos são três espécies de ratos, uma das quais chegou com os maoris da Polinésia há 800 anos, e os gambás australianos (“possums”), levados para a indústria de peles.
Em 2023, a PFW finalizou sua primeira etapa, na península de Miramar, região de mil hectares e 20 mil residentes. A vigilância segue: 30 voluntários monitoram câmeras espalhadas por Miramar, uma a cada hectare, e checam armadilhas. Um telefone 0800 está à disposição para quem cruzar com algum invasor —a PFW promete inspecionar o local em 12 horas.
“Tivemos um furão que voltou a Miramar. Foi pego numa câmera e capturado”, disse Willcocks. “E tivemos alguns ratos, embora apenas um nos últimos três meses. Vai acontecer porque estamos numa cidade, não dá para controlar tudo. Mas conseguimos identificar e capturar. Temos uma base de voluntários incríveis.”
Os resultados surpreenderam. O relatório anual da organização registrou aumento de 91% das aves nativas e 200% de wētās, insetos herbívoros parecidos com grilos. Entre as pīwakawakas, um passarinho carismático com cauda em leque, o crescimento foi de cinco vezes.
A pomba local, chamada kererū, e o tūī, famoso pelo canto e tufo branco no pescoço, são hoje comuns pela capital, quando nos anos 1980 restavam apenas uma dúzia de pares.
Para Willcocks, o projeto vai além da avifauna. “Todos se beneficiam de uma cidade livre de ratos. Eles comem fiação, estragam comida, espalham doenças, destroem casas”, disse. “Para donos de imóveis e empresários, economizamos dinheiro para eles e melhoramos suas vidas.”
Com orçamento de 4 milhões de dólares neozelandeses (R$ 13 milhões), a organização recebe fundos de agências do governo, doações do público e ajuda de empresas locais, como uma loja de ferramentas que oferece madeira e uma fabricante de pasta de amendoim (usada para iscas).
Agora na segunda fase, a PFW trabalha numa região que engloba o centro da cidade e 60 mil moradores. A principal ferramenta são armadilhas à base de toxinas: os ratos comem a isca e levam uma dose letal, e os mustelídeos comem os ratos e são envenenados por tabela. O governo recomenda 26 tipos de aparelhos, testados por um comitê de bem-estar animal.
“Na Nova Zelândia, somos viciados em toxinas. Usamos o tempo todo. Os predadores desaparecem, e dois anos depois voltam. Então usamos de novo. É um ciclo”, disse Willcocks. “Mas dissemos à cidade de Wellington que queríamos fazer isso uma vez e nunca mais. Foi uma ideia muito bem recebida porque faz sentido: faça direito e não tenha que repetir.”
Ele estima que Wellington tenha ao menos 10 mil “trapeiros”, como Hare e seu colega Paul Touhey, que aderiram ao hobby em 2018 e já não pegam quase nada na sua região. Para combater a “abstinência de predadores”, visitam uma estação no Parque Nacional Whanganui para checar as caixas por lá. O local abriga uma população de whios, um pato raro presente também nas notas de 10 dólares neozelandeses.
“É um passatempo solitário e às vezes nos reunimos para tomar uma cerveja e bater papo”, disse Touhey, cuja garagem virou ponto de distribuição de 650 caixas aos residentes do bairro.
“Não gostamos de matar ratos, são criaturas e incrivelmente adaptáveis. Mas estão matando nossas aves nativas. Então, ficamos do lado delas.”
Fonte ==> Folha SP