Desde o início da minha trajetória, sempre compreendi a charcutaria tradicional não apenas como técnica de conservação de alimentos.
Como um patrimônio cultural que atravessa gerações e carrega em si saberes de povos originários e diásporas africanas. Ao mergulhar nesse universo, percebi que falar de charcutaria é falar de memória, de identidade e de pertencimento. É olhar para o Cerrado brasileiro e enxergar nele uma potência gastronômica que vai muito além do que costumamos ver nas grandes capitais.
Na minha prática como mestre cervejeira e cachaceira, a charcutaria aparece como um elo fundamental entre a fermentação, a cura e os sabores que dialogam com nosso território. Cada técnica, cada corte e cada processo de maturação traz consigo a história de povos que, diante da necessidade de conservar alimentos, desenvolveram métodos que hoje se tornaram verdadeiras experiências gastronômicas. A charcutaria, quando tratada com respeito às suas origens, é também um ato político: reafirma a força de tradições que resistem e se reinventam.
É nesse contexto que atuo à frente da Bakité Fermentadora de Biomas e da Her More, iniciativas que unem pesquisa, gastronomia decolonial e experimentação sensorial. No dia a dia dessas casas, trabalhamos para transformar sabores do Cerrado em experiências que ultrapassam a mesa: elas se tornam narrativas, encontros, diálogos entre passado e futuro. É ali que a charcutaria encontra espaço para ser reinterpretada com base em ingredientes locais, técnicas ancestrais e inovação.
O grande desafio — e também a grande oportunidade — está em comunicar esse valor para além da cozinha. Muitas vezes, a charcutaria é vista apenas como produto final, mas, para mim, o mais importante é mostrar o processo, a origem e a história que dão sentido a cada peça. Nesse sentido, vejo a gastronomia como um campo de educação cultural, em que comer é também aprender.
Acredito que empresas e profissionais do setor precisam assumir a responsabilidade de preservar e valorizar os saberes que sustentam a nossa identidade alimentar. No Cerrado, esse movimento é ainda mais urgente, diante das pressões ambientais e sociais que ameaçam os biomas e, consequentemente, os ingredientes que dão vida à nossa charcutaria.
Ao longo da minha jornada, compreendi que inovar não é apagar o passado, mas aprender a dialogar com ele. A charcutaria tradicional me ensinou isso: cada corte, cada tempo de cura, cada tempero escolhido é um convite a respeitar a história e a transformála em legado.