O que parece óbvio não é óbvio – 30/06/2025 – Thaís Nicoleti

Um músico está sorrindo enquanto toca um violão em um palco. Ele usa uma camisa escura e uma jaqueta azul. O fundo é desfocado, com luzes e fumaça, sugerindo um ambiente de show ao vivo.

Não é novidade para ninguém que muita gente não lê por completo as notícias publicadas no jornal, contentando-se em tomar conhecimento do assunto apenas pelo seu título. Antes que se atribua o comportamento à internet, que, de fato, incrementa o processo, é bom lembrar que, no passado, as pessoas faziam a mesma coisa nas bancas de jornais, daí a importância das manchetes e, no caso do impresso, do tamanho das letras e da posição na página. Por isso mesmo, um bom título deve ser atraente, sintético e sem ruídos de comunicação, ou seja, claro.

Dito isso, é preciso reconhecer que a tarefa nem sempre é das mais fáceis e que, vez ou outra, vão acontecer pequenos incidentes linguísticos. Tomei conhecimento de um desses títulos controversos, publicado aqui mesmo, na Folha, em uma discussão que se travava em rede social. A matéria era uma cobertura das apresentações musicais do último sábado no Festival Turá, realizado no parque Ibirapuera, em São Paulo, cujo título era o seguinte: “Lenine canta para público de costas, que tirava fotos e conversava, no Festival Turá”.

Sem terem lido a reportagem, os leitores se dividiam entre os que tinham certeza de que Lenine tinha dado as costas para a plateia, a qual tirava fotos e conversava durante o show, enquanto outros estavam convictos de que o público é que tinha dado as costas para o cantor. As duas interpretações eram possíveis, mas, do ponto de vista da construção linguística, a interpretação indesejada era a que parecia estar correta. Vejamos.

Quando dizemos “Lenine canta para público de costas”, o mais natural é interpretar que a expressão “de costas”, por expressar uma circunstância (no caso, uma posição), não uma característica, estaria ligada ao verbo “cantar” (como ocorre com outros verbos, por exemplo, em “deitar-se de costas”, “sentar-se de costas para” etc.). Se fosse esse o caso, a ambiguidade se resolveria com a mudança de posição dessa locução (“Lenine canta de costas para público, que tirava fotos e conversava”). Essa, porém, era a interpretação errada.

Alguém poderia argumentar que ninguém imaginaria que Lenine desse as costas à plateia, certo? Surge aí outro problema: os títulos costumam enfocar justamente os elementos inesperados, a velha história de que a notícia acontece quando o homem morde o cachorro, não o contrário. Bem, o mistério de Lenine se resolveria facilmente para quem lesse os primeiros parágrafos do texto.

O jornalista nos conta que, durante o show do cantor, “[…] o público se manteve apático, com uma pessoa ou outra ensaiando uns passos. A maior parte, porém, se manteve impassível, principalmente quem estava na área VIP. Por lá, havia gente de costas para o palco fotografando os amigos ou conversando”. Agora sabemos que o elemento inesperado do título não era uma suposta reação radical de Lenine a um público supostamente apático. O que foi tratado como surpreendente, digno de encabeçar o texto, foi o suposto insucesso de público de Lenine. Como se verá na leitura do restante do texto, essa mesma plateia parece ter-se animado com as demais atrações.

Nesse caso, a expressão “de costas” usada no título se referia a “público” (“público de costas”). Esse foi o elemento ambíguo da frase, que deu margem a diferentes leituras. No parágrafo explicativo, temos uma redação bastante clara: “havia gente de costas para o palco fotografando os amigos ou conversando”. Ao transformar a informação em título, optou-se, inadvertidamente, por suprimir um elemento importante, ou seja, o palco, que funcionaria como uma âncora semântica (de costas para onde, para quem, para quê?).

Preservada a construção “de costas para o palco”, seria necessária mais uma pequena alteração para garantir que a mensagem chegasse ao destino sem solavancos. Que o leitor veja por si mesmo: “Lenine canta para público de costas para o palco, que tirava fotos e conversava, no Festival Turá”. A frase ainda não ficou boa, certo? O problema está na posição do pronome relativo “que”, que deveria ficar logo depois do termo ao qual se refere, ou seja, “público”, pois era o público que tirava fotos e conversava.

Com essa pequena alteração (e uniformizando os tempos verbais), teríamos o seguinte: “Lenine canta para público que, de costas para o palco, tira fotos e conversa”. A expressão “de costas para o palco”, entre vírgulas, posta depois do “que”, refere-se claramente ao público, que circunstancialmente estava nessa posição. Essa construção não permitiria a interpretação de que Lenine deu as costas a um público apático. A Redação optou por reformular o título da seguinte forma: “Lenine canta para público apático, de costas para o artista, no Festival Turá“. Embora o elemento “para o artista” desfaça a ambiguidade semântica, a frase ainda não flui sintaticamente, sobretudo porque incorre em duplicação, mas esse tema fica para a próxima vez.

É claro que o certo é ler por completo as matérias, que os jornalistas têm grande trabalho para produzir, mas sabemos que nem todas serão lidas por todos e que os títulos, estes sim, ganharão o grande público e, às vezes, vida própria. É sempre melhor evitar as ambiguidades.



Fonte ==> Folha SP

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