O Último Baile

O Último Baile

Dona Isaura sempre teve mãos ocupadas. Mãos que embalaram filhos, amassaram pão, contaram dinheiro no caixa do armazém que, por quarenta anos, sustentou a casa de telhas vermelhas na esquina da Rua das Acácias, bairro da Pituba, em Salvador, Bahia. Agora, aos 78, as mesmas mãos repousam sobre os joelhos, num leve tremor, enquanto observa Gilmar, o neto, discutir com o advogado no jardim.

– Vó não deve mais dirigir, é perigoso – diz o rapaz, ajustando o relógio smartwatch que se destaca no pulso.

O carro – um Uno vermelho, comprado à vista em 1999 – seria vendido, “para seu próprio bem”, disseram. Isaura fecha os olhos e lembra da conversa com dona Marcia, sua vizinha, falecida no ano passado; uma mulher que passou a vida juntando prataria e porcelanas, só para ver os filhos venderem tudo num brechó improvisado, enquanto ela definhava num asilo com paredes de verde-hospital.

– Autonomia não se herda, Isaura, se conquista – Marcia disse, numa tarde em que a artrite a impedia de segurar a xícara. “E ninguém te avisa quando ela começa a escorrer pelos dedos”, completou.

Mais tarde, já a noite, Isaura abre a gaveta da cômoda. Ali estão os documentos: a escritura da casa (em seu nome), a caderneta de poupança (que ninguém sabia existir), a chave do cofre onde guarda as joias simples da juventude. Ela suspira, pega uma foto antiga — uma moça de vestido rodado dançando no baile da primavera de 1965 — e sorri. Naquele tempo, ela já sabia o que muitos só aprendem tarde demais: “coisas demais viram algemas; confiança demais vira corda no pescoço. Quanto mais coisas você tem, mais elas te exigem… e, se não perceber, passam a te possuir”.

No dia seguinte, acorda cedo. Pega o ônibus ‘BRT’ (sim, o Uno ainda está lá, mas ela escolhe não usá-lo), vai à Caixa Econômica, depois ao cartório. Quando o neto liga, preocupado, ela corta gentilmente:

– João, venha jantar domingo. E traga sua esposa. Precisamos conversar sobre meu testamento.

Isaura ‘ouve’ o silêncio pesado do outro lado da linha e esboça um sorriso. Enquanto conversa, abre a janela. O vento balança os galhos da mangueira que plantou há décadas. Nada naquela casa é supérfluo: cada objeto foi escolhido, cada conta paga, cada decisão calculada.

Dona Isaura está aliviada. Tem consciência que a arte de viver é uma habilidade rara. É comer com prazer, dormir profundamente, rir com liberdade e não se deixar consumir pelas preocupações, porque, neste mundo, nada é realmente nosso. E quanto menos pertencermos às coisas, mais livres seremos.

A velhice, ela sabe, é como um inverno inesperado. Nela, alguns chegam de casaco, outros de bermuda e camiseta. E enquanto o café esquenta no fogão, dona Isaura dança sozinha na cozinha, lenta, mas dona de cada passo.



Fonte ==> Bahia Notícias

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